O trem tinha acabado de parar na estação Flamboyant por onde desembarcou Castor Di Franco. Ele estava com setenta e cinco anos e carregava uma maleta onde guardava papéis importantes de um estudo sobre o clima no planeta Terra...
Castor é professor de Zoologia aposentado, tendo lecionado na Universidade Majestic durante os últimos trinta e cinco anos, no entanto, depois da aposentadoria havia nove anos, passou a se dedicar a compreender o papel de cada um na questão climática do mundo atual.
Seu estudo tinha grande significado pessoal, mas muito mais para se entender as necessidades de reversão do aquecimento global, sob pena de extinção da maior parte das espécies habitantes do planeta.
Dentro dele uma só certeza: precisava passar adiante tudo que anotara durante esses últimos nove anos a respeito do assunto, mas, apesar de ser um professor respeitado, percebeu que depois de se aposentar caíra em um limbo no qual prevalecia um sentimento de insignificância, afinal, ele contribuíra por anos a fio em uma matéria que dominava amplamente, mas, agora, se sentia mais um curioso no assunto “clima global”, fazendo-o ficar à margem de outras contribuições sobretudo neste assunto que tanto o movia adiante.
Castor, durante esse período, acumulara vasto conhecimento, mas não se sentia muito à vontade para discursar em uma aula magna, por exemplo. Havia se afastado do mundo universitário e se recolhido em sua fazenda depois da aposentadoria para buscar tranquilidade. Ele estava disposto a entender melhor o papel de cada cidadão no mundo de hoje.
Ele era uma pessoa humilde, apesar de ter sido um grande professor e intelectual. Dentro dele sentia a presença de uma “ausência” de vaidade, fortalecendo a sensação de insignificância perante si mesmo. O que sabia parecia se desvanecer ao primeiro arroubo de importância no assunto. Era precisamente essa “ausência de vaidade” que, paradoxalmente, mais o atormentava. Castor conseguia discernir, com a clareza de um anatomista dissecando um espécime, as próprias entranhas morais. A humildade não era uma virtude natural nele, mas uma fortaleza construída tijolo a tijolo contra um inimigo íntimo: a convicção arrogante de que ele, e apenas ele, poderia conectar os pontos infinitesimais que levavam ao colapso climático. Seu estudo não era apenas uma coleção de dados; era uma teia complexa de relações ecológicas e sociais que ele tecia em sua solidão. E esse era o cerne do seu tormento: a teia era significativa, mas a aranha, ele sentia, era insignificante.
A maleta de couro, desgastada nas bordas, era o cofre desse conflito. Dentro dela, havia mais do que papéis; havia a prova tangível de sua significância potencial. Cada gráfico, cada anotação manuscrita à luz de um abajur na varanda da fazenda, sussurrava: “Você vê o que os outros não veem”. Era um sussurro sedutor, perigoso. Ele temia que, ao compartilhar plenamente seu trabalho, esse sussurro se transformasse num grito de presunção, expondo não a gravidade do planeta, mas a vaidade de um velho professor que se julgava um iluminado.
O trem partiu com um ronco surdo, deixando-o parado no cais da estação Flamboyant, um homem imóvel em um mundo em movimento. Ele estava ali para encontrar-se com uma ex-aluna, a Dra. Lívia, agora uma voz emergente e respeitada na climatologia. Ela insistira para vê-lo, dizendo ter “ouvido rumores” sobre seu trabalho. Castor aceitara o convite não pela vaidade de ser lembrado, mas pela necessidade humilde de validar sua insignificância. Se Lívia, com seu brilho atual, visse seu estudo e o achasse útil, talvez isso significasse que ele não havia apenas gasto nove anos num exercício de egocentrismo solitário.
Ele ajustou os óculos e olhou para o relógio. Estava adiantado. Sempre adiantado. Um hábito de quem acredita que o próprio tempo não é significativo o suficiente para fazer os outros esperarem. Respirou fundo, o ar da cidade carregado de fuligem e pressa, tão diferente do ar puro e sem pressa de sua fazenda. A mão que segurava a alça da maleta suou. Aquele era o seu momento de verdade: permaneceria no anonimato confortável de sua insignificância, ou daria o passo audacioso que transformaria seu conhecimento em ação, arriscando-se a ser visto não como humilde, mas como… significante?
A dúvida cintilava no horizonte de sua atenção quando outra ideia cruzou o farol vermelho e colidiu diretamente contra sua cara. Pow! Um soco teria sido menos indolor. Seu olho ficou roxo de imediato. A pálpebra esquerda desabou como calha enferrujada. O que era aquilo? O murro do desastre ambiental batendo-lhe com força. Ele era forte apesar da idade, mas talvez não tão preparado para ideias com grande arroubo como tornar-se um político ambientalista. Sentiu a “mão pesada” da realidade, exigindo-lhe posicionamento, atitude. Parecia fácil se esconder por detrás do “insignificante” e subestimar o significado que havia no estudo climático que havia preparado.
Dra. Lívia chegara no próximo trem e na hora certa. Castor sorriu ao dizer:
“Você já era uma doutora bem antes de receber o título!”
“O senhor acha mesmo, professor?” – respondeu ela, devolvendo-lhe o sorriso.
Castor abriu-se com Lívia, que lhe deixou bastante à vontade, acolhendo as demandas do professor que não escondeu sua angústia:
“Não sou nada, Lívia, mas venho estudando sistematicamente o clima no planeta. O que eu posso dizer é que estamos fritos. Literalmente. Quero que você leve adiante o que consegui construir nesses nove anos.”
A declaração ecoou no ar entre eles, um fardo transferido. Lívia não pegou imediatamente na maleta que Castor empurrava para ela com uma urgência quase desesperada. Em vez disso, seus olhos, agudos e acostumados a decifrar padrões complexos em nuvens de dados, fixaram-se no rosto do professor. Ela viu a pálpebra caída, a sombra de exaustão sob seus olhos, mas, mais profundamente, viu o tremor da contradição que o consumia: o insignificante oferecendo um significante.
“Professor”, ela disse, a voz suave mas firme, “você não é ‘nada’. Você é um zoólogo que passou nove anos estudando climatologia. Isso não é insignificância, é coragem interdisciplinar. E ‘estar fritos’ é um jargão que esconde a complexidade do que você tem aqui.” Ela finalmente tocou a maleta, não para aceitá-la, mas para empurrá-la de volta gentilmente em sua direção. “Não quero o seu estudo, Castor. Não assim.”
O coração de Castor afundou. Era o que ele sempre soube. Era insignificante. Suas anotações, os rabiscos de um velho excêntrico. A vaidade, afinal, o havia enganado.
Mas então Lívia continuou, e suas palavras foram um bisturi a dissecar sua alma. “Eu não quero o seu estudo porque ele é seu. Ele carrega a sua linguagem, as suas conexões únicas, fruto de uma mente que vê o mundo não como um climatologista puro, mas como um zoólogo que entende que a crise climática é, no fundo, uma crise de coexistência. Se eu pegar isso e publicar sob meu nome, será apenas mais um paper. Se você o fizer, será uma declaração.”
Ela se inclinou para frente, sua expressão séria. “O senhor tem medo da vaidade, eu entendo. Mas não está vendo que se esconder atrás de uma falsa humildade é outra forma de orgulho? É o orgulho de acreditar que a própria voz não é digna o suficiente, anulando assim toda a significância do seu trabalho. O mundo não precisa de mais um mártir silencioso, professor. Precisa da sua voz.”
Castor ficou paralisado. A “mão pesada” da realidade não era mais um soco; era um peso que o prensava contra a própria consciência. Lívia não estava oferecendo um salva-vidas para sua insignificância. Ela estava jogando-o de volta no mar tempestuoso de seu próprio significado potencial, desafiando-o a nadar, não a afundar. O insignificante e o significante travavam agora uma batalha decisiva dentro dele, e o campo era a velha maleta de couro, repousando ali próxima a eles feito um artefato de poder imenso e aterrador.
A humanidade de Castor estava sendo provada. Ele sentiu a ponta lancinante do conflito íntimo lhe ferir a consciência. Por um lado, as palavras de Lívia foram certeiras, abafando qualquer outro sentimento que não fosse a sensação de se acovardar. Ele não poderia se achar insignificante de modo algum, Lívia estava certa. A conexão de sua formação, conhecimento e experiência em zoologia passava inequivocamente pela necessidade de reequilibrar as condições climáticas no planeta, porque não havia mais um Nóe salvador para os homens e bichos.
Mas por outro… Esse outro lado é que parecia uma rocha sobre ele, um sentimento estranho a esta altura da vida – ser insignificante representa o quê? Ele estava ali com a questão levantada junto com uma das sobrancelhas, agora olhando para Lívia.
“Você ganhou, Lívia”, disse ele. “Foi a melhor coisa que fiz na última década. Meu estudo é meu estudo, tem a minha concepção e o meu olhar. Vou dar sequência eu mesmo, mas gostaria que me ajudasse a planejar meus novos passos. Preciso de alguém mais jovem e competente como você a meu lado nessa luta”.
Um sorriso largo, genuíno e cheio de alívio iluminou o rosto de Lívia. Ela finalmente pegou a maleta, mas agora num gesto de pacto, não de transferência. “Esse é o professor que eu lembro”, disse, sua voz carregada de um respeito renovado. “E não se preocupe, não vou deixá-lo navegar sozinho nesses mares burocráticos. Eles são traiçoeiros.”
Os “mares burocráticos” revelaram-se, nas semanas seguintes, uma subestimação grosseira. Era um oceano de gelo, hostil e indiferente. O plano de Lívia era ambicioso: levar o estudo de Castor diretamente a um influente comitê internacional de crise climática. Ela usou seus contatos, articulou reuniões virtuais, apresentou Castor não como um velho professor aposentado, mas como “uma voz única, interdisciplinar, com uma perspectiva fresca e urgente”.
A reunião foi marcada. Castor preparou-se como se fosse para a aula de sua vida. Vestiu seu terno poeirento, ensaiou seu discurso, afiou seus argumentos. Durante trinta minutos, ele falou. Falou das migrações de aves alteradas, da sincronia perdida entre flores e polinizadores, do estresse térmico em ecossistemas inteiros visto não como gráficos de temperatura, mas como um colapso de relações zoológicas. Ele mostrou a teia, complexa e bela, que havia tecido em nove anos de solidão.
Do outro lado da tela, rostos sérios assentiam. Polidos. Profissionalmente interessados.
Quando ele terminou, houve um silêncio. Então, o presidente do comitê, um homem de fala suave e vocabulário impregnado de jargões, falou: “Um trabalho meticuloso, Professor Di Franco. Realmente impressionante em seu… escopo. Agradecemos profundamente sua contribuição.”
Castor sentiu um frio percorrer sua espinha. Aquele agradecimento soou como um epitáfio.
“Contudo”, o homem continuou, “as diretrizes atuais do comitê estão muito focadas em modelagens climáticas de alta resolução e metas de transição energética mensuráveis no curto prazo. A abordagem ecológica-relacional, embora fascinante, carece da… da objetividade quantificável que nossas agências financiadoras exigem. É, se me permite a franqueza, um pouco anedótica para nossos protocolos atuais.”
Anedótica. A palavra ecoou na cabeça de Castor como um sino fúnebre. Nove anos. A soma de uma vida dedicada à ciência da vida, reduzida a uma anedota. Seu significante, sua razão de ter saído do casulo, havia sido declarado insignificante.
Ele agradeceu com uma voz que soou como de outro homem, desligou a câmera e ficou olhando para a tela escura. O conflito interno não era mais entre a humildade e a vaidade. Era algo pior, mais profundo e desolador. Era a confirmação de seu pior medo. O mundo não só não o via como significante, como havia olhado para a essência do seu trabalho e a havia considerado insignificante. A vaidade não era mais uma ameaça; era um luxo ridículo diante da absoluta nulidade que ele sentiu naquele momento. O peso não era mais o de um fardo importante, mas o de uma lápide.
O abatimento trouxe mais: uma vontade de desaparecer numa floresta e ficar junto com os bichos. Seria solidário a quem lhe dera sustento praticamente a vida toda. Imergir na tarefa de conhecer uma variedade sem número de espécies, analisá-las, por vezes, codificá-las em escalas tipológicas, tudo isso ele fez, então agora era chegada a vez de ele se juntar a quem propiciara uma vida cheia de ocupação prazerosa, que transformara a pessoa de Castor em todos os sentidos.
Ele resolveu aproveitar o impacto de sua realidade. Ligou para Lívia e lhe disse sem esconder muito a consternação:
“Lívia, vou embora. Atingi meu limite. Não dá mais. Fique à vontade para continuar se quiser, pois eu não quero. Não quero mais, cansei.”
Se uma pessoa desavisada lesse as suas palavras sem saber nada antes, talvez pensasse tratar-se de um caso de amor. Mas no fundo era. Para Castor era como se um amor tivesse morrido e ele estivesse de luto. Tanta dedicação a uma causa se assemelhava a outro tipo de relação amorosa talvez. O certo é que ele ficou arrasado com a acolhida digamos desinteressada daquele comitê frio e burocrático que jogou uma pá de cal sobre o túmulo de seu longo estudo.
Não demorou quinze minutos e soou a campainha do interfone da portaria. Castor atendeu com voz de trovão e em seguida, em contraste, a voz fina do porteiro do condomínio disse:
“Dra. Lívia está aqui embaixo”.
Inútil a sua presença, pensou Castor num átimo de instante, mas permitiu que ela subisse ao seu apartamento.
Castor abriu a porta alguns segundos depois de Lívia tocar a campainha. Ele esperava encontrar um rosto de pena, ou pior, de impaciência frustrada. Em vez disso, deparou-se com uma mulher de botas barradas de lama, calças cargo e uma mochila de trilha nas costas. O cabelo dela estava preso de qualquer jeito e havia um brilho de urgência terrena em seus olhos, não o brilho polido das telas de conferência.
Ela não disse “não desista” ou “eles estão errados”. Ela entrou, deixou a mochila pesada no chão da sala com um baque surdo e, antes que Castor pudesse proferir qualquer palavra de autocomiseração, declarou:
“Pegue sua bota de campo, professor. E sua capa de chuva. Não estamos discutindo isso.”
Castor ficou paralisado, olhando para a mochila dela e depois para a sua determinação feroz. “Lívia, eu não estou a fim de… de fazer uma trilha. Não agora.”
“Também não estamos fazendo uma trilha”, ela respondeu, abrindo o zíper da mochila. De dentro, ela tirou não papéis ou um laptop, mas duas garrafas de água, uma lanterna e um par de luvas de trabalho. “Estamos indo para a Reserva do Camboatá. Tem uma área de regeneração que está sofrendo com as últimas chuvas irregulares. O IPÊ está monitorando a mortalidade de mudas. Precisamos de um zoólogo no campo. Um que entenda que a morte de um inseto polinizador hoje é a morte de uma árvore amanhã. Alguém que veja a teia, não apenas os fios.”
Ela estendeu as luvas para ele. O gesto era um desafio, uma proposta de pacto muito mais concreta do que qualquer reunião virtual.
“O seu estudo não foi anedótico, Castor. Foi prematuro. Eles não o entenderam porque estão lendo relatórios, não o solo. Eles não veem o que você vê. Mas eu vejo. E lá fora, naquela terra agonizante, o seu conhecimento não é significante ou insignificante. É necessário. É ferramenta de trabalho.”
Ela olhou nos olhos dele, sem espaço para negociação.
“Você pode ficar aqui de luto pelo amor que acha que morreu, ou pode vir comigo cuidar do que ainda está vivo e gritando por ajuda. A escolha é sua. Mas eu vou, com ou sem você. E levo suas luvas.”
Castor olhou para as luvas ásperas na mão estendida de Lívia. Era um chamado para uma insignificância ativa, suja e prática. Era o oposto da grandiosidade rejeitada pelo comitê. Era pequeno, local, imediato. E naquele momento, parecia ser a única coisa no mundo que fazia algum sentido. Um significado que não precisava do aval de ninguém, apenas das suas próprias mãos para se provar real.
A floresta cheirava a umidade quando Castor ergueu sua cabeça e viu a imensa vegetação, de tonalidades fortes e fracas, se estendendo no seu horizonte. Duzentas mil árvores nativas viviam ali naquele santuário e que precisavam de seu olhar de...
A floresta cheirava a umidade quando Castor ergueu sua cabeça e viu a imensa vegetação, de tonalidades fortes e fracas, se estendendo no seu horizonte. Duzentas mil árvores nativas viviam ali naquele santuário e que precisavam de seu olhar de experiência, que, mesclado com o seu conhecimento técnico, trazia a ele a aura de “salvador da pátria”. Não lembrava em seus setenta e cinco anos de vida de estar numa posição tão privilegiada, do ponto de vista de sua “insignificância”, de poder decidir de maneira tão assertiva na natureza. Sabia de sua eficiência em assuntos catedráticos, mas, agora, ele estava ali respirando o supra-sumo da natureza nativa. “Louvado o Criador de tudo isso”, louvou Castor em sua mente. Um sorriso apareceu-lhe nos lábios, quando se aproximou Lívia junto de outras pessoas. Eram funcionários do IPÊ, que vieram ter com ele também e lhe passar a situação atual da reserva.
A aproximação do grupo não quebrou o feitiço, mas o ancorou na realidade. Eram três pessoas: um botânico jovem de olhos ardentes, uma estagiária com caderno de campo nas mãos e um antigo guarda-parque, cujo rosto curtido pelo sol contava mais histórias do que qualquer livro.
“Professor Di Franco, é uma honra”, disse o botânico, Marcio, apertando sua mão com vigor. “A Dra. Lívia nos falou sobre a sua abordagem. Estamos perplexos com a mortalidade das mudas de Jatobá e Ipê na área noroeste. O solo parece adequado, a irrigação de emergência foi feita, mas elas não vingam. É como se… faltasse algo.”
A frase ecoou no interior de Castor. “É como se faltasse algo.” Era a tradução perfeita, em linguagem florestal, do seu estudo inteiro. Ele não era mais um suplicante diante de um comitê; era um médico sendo chamado para um caso complexo.
“O solo pode estar adequado para a árvore, mas está adequado para a sua vida?” A pergunta de Castor saiu calma, enquanto ele se ajoelhava, ignorando o protesto surdo dos seus joelhos. Sua mão, agora enluvada, cavou um pouco na terra úmida. “O senhor vê?” ele disse, direcionando-se ao guarda-parque, o homem chamado Seu Orlando. “A textura, a umidade… mas não vemos os engenheiros.”
“Engenheiros?” a estagiária perguntou, anotando.
“Insetos, minha cara. Coleópteros, minhocas, formigas. Os arquitetos do solo. Eles aeram a terra, decompõem a matéria orgânica, criam os túneis por onde as raízes respiram e a água drena.” Ele ergueu um punhado de terra, deixando-a escorrer entre seus dedos. “Vocês irrigaram, mas sem essa arquitetura invisível, a água pode estar estagnada, criando podridão radicular, ou simplesmente não chegando onde deveria. E sem os polinizadores certos… bem, uma árvore solitária é um epitáfio.”
Ele se levantou, e seu olhar percorreu o dossel, a camada superior das árvores. “Não se trata apenas de salvar mudas. Trata-se de salvar um sistema. O meu estudo…”, ele fez uma pausa, e a palavra não doeu mais, “…ele fala justamente dessas conexões. A queda na população de um besouro específico, devido a uma primavera mais quente, pode ser a causa raiz da morte de uma centena de árvores aqui. É uma teia. Cortamos um fio invisível em São Paulo e a floresta no Camboatá sente.”
Lívia observava, silenciosa e satisfeita. Não era mais o professor abatido. Era o zoólogo em seu habitat, seu intelecto significativo encontrando eco no mundo real, sua suposta insignificância pessoal dissolvendo-se na imensa e crucial significância do seu saber. Castor não estava mais tentando provar seu valor para homens em salas refrigeradas. Ele estava ouvindo a floresta, e a floresta, em seu silêncio estrondoso, lhe confirmava tudo.
Eles conversaram por mais uma hora se tanto. Combinaram de executar certas ações práticas, sob a orientação do professor.
“Professor, estamos muito bem servidos com a sua imensurável contribuição”, disse Marcio, admirado com a presença sentida de Castor, agora emocionado pelo respeito e carinho que estava recebendo da equipe. Lívia, ainda no seu canto, sorria satisfeita, mesmo sabendo que era o começo de uma bela e difícil jornada que estavam começando.
Como as coisas eram “pra ontem”, Marcio já estava bem cedo no dia seguinte para acompanhar Castor numa vistoria pela floresta. Trazia algumas pequenas caixas contendo insetos variados. O objetivo era “adubar” a terra com os “engenheiros da floresta”.
O ar da manhã na reserva era límpido e carregado do perfume de terra molhada e vida. Enquanto caminhavam por uma trilha secundária, Marcio, com o cuidado de um ourives, abria as pequenas caixas ventiladas.
“Trouxe os ‘operários’, professor”, disse ele, mostrando uma coleção de besouros rola-bosta de espécies nativas. “Sem eles, o ciclo de nutrientes fica truncado. O esterco do macaco-prego e da capivara acumula-se, e não volta para a terra como deveria.”
Castor observou, um brilho de reconhecimento nos olhos. Era a sua teoria ganhando forma, saindo das páginas da maleta e se materializando na palma da mão de um jovem botânico.
“Exatamente, Marcio. A Botânica nos mostra a arquitetura da floresta – a árvore que não cresce. A Zoologia nos aponta os pedreiros que faltam na obra. Você estuda o sintoma; eu investigo a causa invisível.” Ele apontou para um jatobá jovem, com as folhas pálidas e murchas. “Você vê uma planta doente. Eu vejo o fim de uma relação. O besouro que não rolou a bola de esterco, a abelha nativa que não polinizou a flor, a minhoca que não aerou o solo aos seus pés. São elos quebrados numa corrente que sustenta tudo.”
Enquanto Marcio liberava os besouros em áreas estratégicas, Castor explicava, sua voz encontrando um ritmo esquecido, o ritmo da aula prática, do conhecimento compartilhado in loco.
“O senso comum vê um inseto e pensa: ‘que insignificante’. Mas ecosistemas inteiros dependem desses insignificantes. A vaidade humana nos faz crer que somos o significante máximo, o ápice. É um erro. A verdadeira significância está na rede, na interdependência. Um homem sozinho, por mais brilhante que seja, é como um besouro fora do seu esterco: isolado, impotente. Seu trabalho morre com ele.”
Ele fez uma pausa, olhando para as caixas vazias. O gesto de Marcio não era apenas uma técnica de reflorestamento; era um ato de restauração de significado.
“Meu estudo foi rejeitado porque era sobre a importância do insignificante para um mundo que só enxerga grandiosidades. Um comitê internacional quer salvar o planeta com uma única solução monumental. Eles não entendem que salvar o planeta começa com um besouro, numa reserva como esta. Começa com um ato que parece, à primeira vista, completamente insignificante.”
Marcio fechou a última caixa e olhou para o professor. “Para nós, professor, esse ato é a coisa mais significante do mundo.”
E naquele momento, Castor sentiu que a “insignificância” do seu trabalho não era uma derrota, mas uma reclassificação. Talvez a verdadeira importância não estivesse no palco global, aplaudido por pares, mas aqui, no silêncio da mata, sendo sussurrada de volta à existência, um besouro de cada vez.
Castor acompanhou o trabalho de reflorestamento do jovem botânico ao longo do mês, fascinado com a própria constatação de que seu estudo na prática estava certo. Havia um novo alento em seus olhos marejados, janelas de sentimentos vívidos que efervesceram ao longo dos anos. Percebia que sua experiência ganhara uma qualidade sutil: a percepção única. Uma espécie de olhar sobre o burburinho caótico das emoções, atravessando para o outro lado da margem. Ali onde reinava um oceano calmo e relaxante, favorecendo às boas decisões.
O trabalho de Castor e de Marcio, o botânico, parecia despontar como de grande valia ambiental, de maneira que mais reservas ecológicas queriam seus valiosos serviços. A experiência e conhecimento de Castor floresciam em meio à juventude de Marcio, e assim eles começaram a trabalhar juntos em outros projetos de sustentabilidade, passando também a dar palestras de conscientização ambiental para populações em várias partes do país.
A parceria entre o zoólogo aposentado e o botânico jovem não era mais apenas uma colaboração técnica; tornou-se um símbolo. A imagem de Castor, com sua postura ereta que a nova missão devolvera, ao lado do dinamismo de Marcio, contava uma história que as palavras sozinhas não conseguiam: a de que o conhecimento só atinge sua plena significância quando é compartilhado entre gerações e disciplinas.
As palestras que começaram em auditórios de universidades logo transbordaram para associações de bairro, escolas públicas e comunidades ribeirinhas. Castor não usava slides complexos ou jargões inacessíveis. Ele contava histórias. A história do besouro rola-bosta que salvou o jatobá. A história da abelha nativa, solitária e “insignificante”, sem a qual uma flor inteira poderia desaparecer. Ele falava da teia, e as pessoas, longe dos gabinetes climatizados, entendiam perfeitamente. Elas viviam a interdependência.
Marcio, por sua vez, trazia o concreto. Mostrava mudas recuperadas, fotos de áreas antes degradadas que agora verdejavam, e explicava o “como fazer”. Ele era a ponte entre a visão ampla de Castor e a ação local.
E foi em uma dessas palestras, num sindicato de trabalhadores rurais no interior do país, que a culminância do capítulo começou a tomar forma. Um homem de mãos calejadas, após ouvir Castor falar sobre a teia da vida, levantou-se e disse, com a voz grave de quem conhece a terra: “O senhor tá dizendo, então, que meu pedaço de terra, mesmo pequeno, faz parte disso tudo? Que se eu cuidar dele, plantando árvore nativa e deixando os bichinho da mata viver, tô ajudando a segurar o mundo?”
Castor sentiu um nó na garganta. Aquele era o momento. Não era mais sobre seu estudo, sua insignificância ou sua significância. Era sobre eles.
“Mais do que isso, amigo”, respondeu Castor, sua voz ecoando no silêncio atento do galpão. “O seu pedaço de terra não apenas ajuda. Ele é fundamental. Porque o mundo não é salvo por um decreto internacional ou um comitê de especialistas. O mundo é salvo por uma rede infinita de pequenos atos, de pedaços de terra cuidados com carinho, de besouros preservados, de riachos protegidos. A revolução não será monumental. Será insignificante. Será feita de milhões de ações pequenas, locais e aparentemente triviais, que, juntas, formarão um novo tecido para o planeta.”
Na plateia, não houve um aplauso imediato, mas um murmúrio de assentimento, um brilho de compreensão nos olhos daqueles homens e mulheres. Era o “insignificante significante” deixando de ser um conflito interno de um velho professor e se tornando um princípio mobilizador. Castor não estava mais carregando sozinho o fardo de seu estudo. Ele o havia plantado, e agora ele brotava, multiplicado, no solo fértil da consciência coletiva.
Em sua alma, convém ressaltar, emergia uma chama de certeza, cada um fazendo sua parte, cada um realizando um simples e “insignificante” ato, isso salvaria o nosso planeta. Absurdamente genial! Algo tão insignificante, que não custava um mísero tostão, bastava. Viver era simples e a objetividade precisa estar presente. Pensar menos e fazer mais, concluía Castor, em suas divagações. O mundo tinha lugar para todos desde que cada um colaborasse fazendo a sua parte, tendo uma atitude consciente de seu papel na teia humana deste planeta.
O ideal desenhado em meio aos seus estudos ambientais na última década estava, pois, se realizando a contento. Marcio vinha desempenhando um papel crucial para a evolução e expansão do projeto em localidades que eram também impactadas, transformando vidas porque esse papel social o projeto alcançava com sobras.
Mas Castor queria mais. Não queria perder tempo, pois na sua idade não poderia se dar a esse luxo. Era preciso pensar objetivamente e colocar o conhecimento e experiência como asas para voar alto e longe. Era nisso que errava Castor em sua mente ainda muito afiada.
O “mais” que Castor queria não era mais uma ambição vaidosa, mas a urgência silenciosa de quem sente a areia da ampulheta escorrer. Sua mente afiada não se perdia em devaneios de grandeza, mas focava na eficiência do legado. Ele e Marcio tornaram-se arquitetos de uma metodologia, um “protocolo do insignificante”, que replicava a simbiose entre zoologia e botânica em escala crescente. E o mundo, finalmente, começou a notar.
A nomeação para o prêmio “Projeto Qualidade Ambiental” não foi uma surpresa para eles, mas o anúncio do presidente do comitê juiz foi um choque térmico no espírito de Castor. Seria o Dr. Alistair Finch, o mesmo homem de vocabulário impregnado de jargões que, anos antes, classificara sua vida de trabalho como “anedótica”.
O palco do evento em Genebra era tudo que Castor outrora imaginara como o ápice da significância: cristais, luzes, vestidos longos e um ar de importância solene. Mas, de pé ali, usando o mesmo terno poeirento daquela reunião virtual fatídica (um ato de quieta rebeldia), ele não sentia o gosto da vingança. Em vez disso, observava Alistair Finch no palco, segurando o troféu de cristal, e sentia uma ponta de… pena? Não, era um entendimento mais profundo.
Finch proferiu os discursos de praxe, elogiando a “abordagem inovadora e escalável”. Mas quando seus olhos encontraram os de Castor no momento da entrega do prêmio, houve um microssegundo de hesitação, um reconhecimento incômodo.
“Professor Di Franco”, disse Finch, sua voz um pouco mais contida do que o habitual. “Um trabalho verdadeiramente… quantificável em seus resultados.”
Castor aceitou o troféu. O cristal era frio e pesado. Ele olhou para ele, depois para o rosto de Finch, e para a plateia de rostos importantes. Em vez de um discurso de agradecimento triunfante, sua voz, calma e pausada, ecoou pelo salão.
“Há alguns anos, o cerne deste projeto foi considerado muito pequeno para ser significante”, começou ele, sem rancor, como um cientista relatando um fato. “Foi chamado de ‘anedótico’. E talvez fosse. Porque ele nasceu não de modelos abstratos, mas da observação humilde de coisas pequenas: um besouro, uma minhoca, uma abelha solitária. Coisas que a vaidade do nosso conhecimento muitas vezes ignora.”
Ele fez uma pausa, seu olhar percorrendo a plateia.
“Este prêmio não é uma validação de que eu estava certo e este comitê estava errado. É uma validação de que o insignificante estava certo. É um reconhecimento de que a verdadeira mudança não começa com um raio, mas com uma semente. Com um ato pequeno, local e, sim, aparentemente insignificante. Aceito esta honra não para mim, mas para todos os ‘insignificantes’ – os besouros, as sementes, os guarda-parques, os agricultores familiares – que, juntos, estão realmente segurando o céu.”
Ao sentar-se sob uma salva de palmas pensativas, Castor não se sentiu significante. Sentiu-se, finalmente, em paz. O conflito havia se dissolvido. Ele havia entendido que a busca por significância era a verdadeira armadilha da vaidade. A liberdade estava em abraçar a beleza poderosa e transformadora do insignificante.
O reconhecimento logo se fez sentir na vida do “insignificante” professor. Castor recebeu dois convites para palestrar em duas empresas que apoiavam ideias ambientais significantes, como era o caso de seu estudo e projeto com Marcio. Eles estavam pavimentando uma história de sucesso concreto, de modo que o reconhecimento chegava em boa hora, achava Castor no fundo. Servia entre outras coisas como um catalisador do projeto a que estavam empenhados. Castor sabia bem da armadilha da vaidade, por isso ficava com a consciência desperta para vigiar qualquer passo em falso. Ele era humano ainda e não sabia até quando. Sabia que a energia se transformava e prosseguia se transformando, e o que achavam que era matéria física amanhã poderia se transformar numa outra forma de ser.
As ciências naturais, e suas leis, encantavam a visão do experimentado professor. Ainda hoje, no auge de seus setenta e cinco anos, maravilhava-se com o pescoço longo da girafa, que lhe permitia acessar folhas no topo das árvores que outros herbívoros não alcançavam. A adaptação da espécie lhe parecia bastante significativo. Sabia também que a zoologia era regida por um conjunto de princípios interconectados que explicam a imensa diversidade, distribuição, comportamento e adaptação dos animais no nosso planeta. Era um conhecimento que reacendia sua alma de menino. Era um momento único que ele sabia muito bem valorizar.
O convite para a aula magna na Universidade Majestic, a mesma onde lecionara por trinta e cinco anos, não foi uma surpresa, mas seu conteúdo tornou-se uma obsessão silenciosa para Castor. Ele não queria apenas apresentar dados; queria tecer um manifesto, um testamento que fundisse a ciência que sempre o guiou com a consciência política que agora se impunha.
O auditório estava lotado. Não apenas com alunos, mas com jornalistas, políticos locais e, nos primeiros lugares, Marcio e Lívia, seus faróis. Castor subiu ao púlpito, não como o homem abatido da estação Flamboyant, mas como uma força da natureza, sua idade conferindo-lhe uma autoridade intocável.
Ele começou com a girafa.
“O pescoço longo da girafa não é um capricho da evolução”, sua voz ecoou, clara e calma. “É uma resposta. Uma solução elegante para um problema de sobrevivência: o acesso a um recurso inalcançável para os outros. A ciência nos mostra isso: a vida se adapta, encontra nichos, resolve problemas.” Ele fez uma pausa, deixando a metáfora pairar no ar. “Hoje, a humanidade enfrenta seu próprio problema de ‘pescoço longo’. Precisamos acessar um futuro sustentável, um recurso que parece estar cada vez mais distante do nosso alcance atual. E a ciência, mais uma vez, tem as respostas.”
Então, ele fez a transição. Com a precisão de um anatomista, dissecou como a mortandade de um besouro no Mato Grosso impactava a segurança hídrica de uma metrópole, como a política agrícola de subsídios podia, inadvertidamente, estrangular um rio a mil quilômetros de distância. Ele não pedia mudanças; demonstrava, com a lógica inexorável de uma equação, que a ação política informada pela ciência não era uma opção ideológica, mas uma necessidade de sobrevivência, a única adaptação possível para a nossa espécie.
A plateia estava hipnotizada. Era a sua aura florescente, uma combinação rara de conhecimento profundo e uma urgência moral que não soava como alarmismo, mas como lucidez.
Ao final, a ovação foi de pé. Entre os que aplaudiam, um senador influente, conhecido por sua astúcia política tanto quanto por seu pragmatismo, aproximou-se com um sorriso largo.
“Professor Di Franco, foi uma aula magistral. Uma lucidez que falta em Brasília. Precisamos de vozes como a sua. Um cargo de consultor sênior no ministério, talvez, para ajudar a traduzir essa visão em políticas públicas. O país precisa da sua ciência.”
A oferta pairou no ar, pesada e dourada. Marcio e Lívia olharam para Castor, expectantes. Era a consagração, a chance de seu “insignificante” trabalho moldar o destino de uma nação.
Mas Castor não sentiu o impulso triunfante. Ele olhou para as mãos do senador, mãos acostumadas a apertos e acordos, e depois para as suas próprias, que ainda cheiravam a terra da Reserva do Camboatá. O novo conflito nascia ali, não como um tormento, mas como uma escolha clara e difícil: permanecer no mundo puro das ideias e da ação local, onde sua significância era incontestável, ou adentrar o labirinto político, onde a ciência é frequentemente um insignificante a ser barganhado, e onde sua nova significância poderia exigir o preço da própria integridade.
Apesar de toda divisão interior que se lançava em sua alma, ele parecia bastante calejado a lidar com esses conflitos que eram o mesmo e conhecido de sua lavra: ego versus realidade. Entendia que não devia projetar em sua mente coisas que ainda só eram ideais, porque a realidade testava e muito. Com essa ciência íntima, ele respondeu ao senador Fabrício de Abreu que iria avaliar com carinho o convite e que precisava pesar algumas coisas de foro íntimo, mas que estava verdadeiramente sensibilizado com o convite.
“A sua ciência, professor Di Franco”, disse o senador, “quero dizer que sua ciência é absolutamente imprescindível agora. Estamos acima da meta de aquecimento global do planeta, precisamos revigorar nossas florestas com essa sensibilidade indutiva pela qual nos permitiu ver a teia do sistema natural dessa rede interconectiva. Sua presença no Ministério do Meio Ambiente será marcante, pode ter certeza”. O senador sorriu e apertou a mão de Castor com a força calorosa da satisfação e bom grado.
A decisão de Castor não foi tomada no calor do aplauso, mas na solidão de seu apartamento, olhando para a maleta de couro desgastada, agora um artefato de sua própria história. Ele a abriu e passou os dedos sobre as páginas do estudo que um dia foi considerado “anedótico”. Aquelas não eram apenas anotações; eram um mapa de relações, um testemunho de que o micro e o macro eram inseparáveis. Aceitar o cargo não seria uma traição à sua essência, mas a sua mais ousada aplicação. Seria tentar costurar, nos fios grosseiros da máquina estatal, a mesma teia de interdependência que ele via na floresta.
Seis meses depois, Castor Di Franco ocupava um gabinete funcional no Ministério do Meio Ambiente. Sua nomeação causou frisson. O “professor do besouro” estava agora no centro do poder. E, para surpresa de muitos – e talvez um pouco para a sua própria –, ele começou a causar transformações.
Sua primeira batalha foi contra um projeto de irrigação em larga escala que ignorava completamente o zoneamento de polinizadores nativos. Enquanto outros discutiam vazões e custos, Castor apresentou mapas mostrando o sumiço de abelhas solitárias essenciais para as culturas alimentares da região. Foi a primeira vez que a palavra “serviço ecossistêmico de polinização” foi usada como argumento legal para modificar uma licença ambiental de grande porte. Ele venceu.
Ele não era um político. Era um tradutor. Traduzia a linguagem complexa da ecologia para a linguagem prática das políticas públicas. Criou um “Selo de Conectividade Ecológica” para municípios que preservassem corredores de fauna, atrelando o repasse de verbas federais a ações concretas de restauração. Era o seu “protocolo do insignificante” sendo institucionalizado.
No entanto, o custo existencial era tangível. Seus dias eram consumidos por reuniões intermináveis, relatórios de impacto e uma sopa de letrinhas de siglas. A burocracia era um ecossistema tão complexo e às vezes mais hostil quanto a floresta. A “significância” de suas ações era mediada por portarias e despachos, diluída em comitês e grupos de trabalho. Ele sentia falta do cheiro da terra, do contato direto com a vida que ele estava, em tese, protegendo.
Numa de suas raras noites livres, ele ligou para Marcio. “Estamos conseguindo, Marcio”, disse, e a fadiga na sua voz era evidente. “O programa de regeneração de solos será implementado em cinco estados. É significativo.”
“Do lado de cá, professor, é mais do que significativo”, respondeu Marcio, com o entusiasmo que Castor outrora teve. “É revolucionário. Mas… e você? Como está o ‘engenheiro do solo’ aí dentro?”
Castor sorriu com melancolia. “O solo aqui é feito de papel, Marcio. E os engenheiros… bem, são outros.” Ele sabia que seu novo significado era inegável, mas a sombra da insignificância pessoal o assombrava de uma nova forma. Ele não era mais um homem, era um cargo. E um cargo, por mais significante que seja, é facilmente substituível. A luta agora não era mais para que seu trabalho fosse reconhecido, mas para que sua humanidade não se perdesse no labirinto de concreto de seu novo e significativo habitat.
Nove meses depois, o professor Castor Di Franco resolveu passar a bola para frente, indicando Marcio Bretas, o botânico, como a pessoa certa para tocar o projeto no Ministério do Meio Ambiente...
Nove meses depois, o professor Castor Di Franco resolveu passar a bola para frente, indicando Marcio Bretas, o botânico, como a pessoa certa para tocar o projeto no Ministério do Meio Ambiente. Conseguiu comprovar a competência do jovem botânico junto a sua equipe ministerial e o próprio Presidente da República da necessidade de ter técnicos especialistas em áreas-chave ambientais para multiplicar as ações locais em regiões importantes do país.
“A minha indicação tem base em profissionais confiáveis e afinados com a minha política de meio ambiente. Marcio tem os requisitos principais para assumir esse posto”, disse ele. “É meu momento de parar e preparar um livro que permita elucidar ainda mais essas ideias que estamos implementando em nosso país. Estou orgulhoso de que tenhamos conseguido avançar em muitas ações nesse tempo. Mas precisamos de continuidade e o Marcio Bretas poderá dar sua contribuição”.
A transição foi suave, quase um ato natural de sucessão ecológica. Marcio Bretas entrou no gabinete ministerial não como um substituto, mas como um herdeiro. Ele trazia consigo a mesma paixão pela terra, mas temperada com uma energia jovem e uma compreensão íntima da máquina que Castor, com tanto esforço, havia começado a redirecionar. Castor assistiu à posse do pupilo com um orgulho quieto. A semente do “insignificante” havia não apenas germinado, mas agora dava seu primeiro fruto robusto no cerne do poder.
De volta à sua fazenda, finalmente envolto no silêncio que há tanto ansiava, Castor abriu um caderno novo. A primeira página estava em branco. Ele a encarou não com a urgência do cientista ou a pressa do político, mas com a paciência do cronista. A caneta pairou sobre o papel, e então, as palavras começaram a fluir, não como um relatório, mas como uma confissão.
Rascunho – “A Teia e o Nó: Memórias de um Homem Insignificante”
Capítulo 1 – O Túnel
“O trem tinha acabado de parar na estação Flamboyant. Eu carregava uma maleta cheia de respostas para perguntas que o mundo ainda não sabia fazer. E, no entanto, naquele momento, eu era a própria interrogação. A vaidade, descobri mais tarde, não é gritar ‘olhem para mim!’. Às vezes, é o medo sussurrante de que ‘eu não sou digno de ser olhado’. Esse foi o nó que precisei desatar…”
Escrever era como reflorestar a própria alma. Cada memória era uma semente que ele plantava no papel. Ele revisitou a dor da rejeição do comitê, não com amargura, mas com uma compreensão renovada:
“Eles não estavam errados, vejo isso agora. Estavam apenas cegos para uma forma diferente de ver. Queriam números, e eu lhes oferecia relações. Foi como tentar explicar o sabor de uma manga a alguém que só conhece a sua tabela nutricional. A derrota não estava no meu trabalho, mas na incompatibilidade de linguagens. E talvez a minha primeira tarefa significativa tenha sido aprender a traduzi-las.”
Ele escreveu sobre Lívia, a aluna que se tornou sua salvadora:
“Lívia não me ofereceu um ombro para chorar, mas uma pá para cavar. Ela entendeu que a cura para a insignificância não é o elogio, mas a utilidade. E que a vaidade se dissolve no suor do trabalho honesto.”
E sobre Marcio, o botânico que se tornou seu braço direito e depois seu sucessor:
“Marcio me mostrou que o conhecimento não é uma estátua a ser adorada, mas uma semente a ser compartilhada. Na sua juventude, vi a perpetuação do que há de melhor na ciência: a curiosidade que serve à vida, não ao ego.”
Enquanto escrevia, Castor percebeu que o livro não era apenas um registro. Era a última e mais profunda aplicação do seu “insignificante significante”. Ele estava, com cada palavra, tornando-se um nó permanente na teia do conhecimento, um elo entre o que foi, o que é e o que ainda pode vir a ser. Sua insignificância pessoal dissolvia-se na significância atemporal da história que estava contando. E pela primeira vez, isso lhe pareceu não um consolo, mas uma vitória completa.
“Evidente que a emoção falou mais alto quando percebi o valor de minhas ideias no campo, na prática, aplicando meu estudo de nove anos. Parece pouco talvez… Ou nem tanto, mas o que eu sei é que valeu a pena”.
Havia, sim, uma pontinha de orgulho emanando de seu ser. Castor havia passado talvez por um ciclo completo que foi se sentir insignificante até ser alçado à significância por seus méritos pessoais. Não havia nada de errado nisso, ele e todo mundo sabiam, e nem por isso se abalaram suas estruturas psíquicas uma vez que era um homem centrado e consciente de seu papel, mas, ainda assim, não tão senhor de certas sensações de inferioridade.
Estranho, sem dúvida. Uma aparente incoerência ver um homem experiente e competente passar pela estrada do “rebaixamento”. Seria um sinal de depressão àquela altura de sua vida, ele aventou. Ele vivia agora, todavia, um momento especial no qual podia recordar e refletir para escrever quem sabe dos últimos acontecimentos de sua vida aos primeiros.
A ponta de orgulho era legítima, sim, mas ela repousava sobre um leito de inquietação. Escrever sobre os triunfos recentes era fácil; a tinta fluía como um rio em época de cheia. O desafio estava em voltar o curso desse rio para sua nascente, para os afluentes obscuros que formaram o seu caráter.
A caneta parou. O “rebaixamento”, a sensação de inferioridade que insistia em ecoar mesmo no auge de seu reconhecimento… de onde vinha? Ele fechou os olhos, deixando a fazenda e o caderno desaparecerem, e mergulhou em um arquivo mais antigo de sua memória.
Rascunho – “A Teia e o Nó”
Capítulo 5 – O Menino e o Fóssil
“Antes de existir um professor, existiu um menino que colecionava ossos. Cresci no interior de Minas, e minha maior felicidade era escavar o barranco atrás da casa, à procura de vestígios de um mundo passado. Um dia, encontrei o que jurei ser um fóssil de dinossauro. Era, na verdade, o fêmur fossilizado de um grande mamífero pleistoceno. Mas na minha mente, era um titã.
Levei meu tesouro ao professor de ciências, o Sr. Geraldo, um homem cuja autoridade me parecia divina. Ele pegou o osso, examinou-o com ar entediado e disse: ‘É só um osso de boi, Castor. Velho, mas comum. Não é significante.’
Ele devolveu o fóssil, mas a palavra ficou. ‘Não é significante.’ Aquele ‘só’ diminuiu não apenas o osso, mas a emoção que tive ao encontrá-lo, a curiosidade que me levou a escavar, o meu próprio achado. A semente da minha insignificância foi plantada ali, não por maldade, mas pela indiferença de um adulto para com o mundo interior de uma criança.
Anos mais tarde, como professor, fiz um juramento silencioso: nunca, jamais, dizer ‘é só’ para a descoberta de um aluno. Porque agora entendo: o que é insignificante para um, pode ser o fóssil de um titã para outro.”
Escrever isso foi como drenar um pus antigo. Ele não estava se analisando com os termos técnicos da psicanálise, mas com as ferramentas que tinha: a memória e a introspecção honesta. Percebeu que sua busca por significância na zoologia, e depois no clima, era uma busca para validar aquele menino e seu fóssil rejeitado.
Avançando no tempo, outra memória surgiu, desta vez de seus primeiros anos como docente na Majestic.
Capítulo 7 – O Doutor e o Inseto
“Lembro-me de um colega, um doutor renomado vindo do exterior, que ao saber da minha pesquisa com besouros coprófagos, soltou uma risada condescendente e disse: ‘Castor, ainda se perdendo com bichinhos? A genética é o futuro. Isso aí é ciência de fundo de quintal.’
Na época, sorri constrangido e mudei de assunto. Mas a frase ‘fundo de quintal’ ecoou em mim, reforçando a divisão. De um lado, a ‘ciência significante’, de alto impacto, genômica, global. Do outro, o meu trabalho, a ‘ciência insignificante’, dos pequenos, dos locais, dos detalhes.
Só muito mais tarde entendi que a vaidade não era só minha, que temia ser insignificante. Era também do doutor, que precisava se sentir significante menosprezando o trabalho alheio. A verdadeira ciência, como a natureza, não faz essa distinção. Um gene e um besouro são igualmente peças do mesmo quebra-cabeça infinito. A humildade não é se achar pequeno, é entender que se é parte de algo grande demais para ser abarcado por qualquer ego.”
Ao fechar o caderno naquele dia, Castor sentiu uma paz diferente. Ele não estava apenas registrando sua vida; estava desenterrando e nomeando os fósseis de suas próprias feridas. E, no processo de escavação, ele finalmente começava a entender que a dicotomia entre insignificante e significante não era uma verdade, mas uma construção. Uma construção que ele, agora, com suas memórias, podia começar a desmanchar.
Um homem desse tamanho, um professor catedrático aposentado, um divisor de águas de sua família simples, alguém que despontou para o mundo com uma vontade e garra de abraçá-lo como quem encontra um irmão perdido por aí.
Ele via o vácuo que começava a ficar aparente em sua memória. Não era nenhuma doença degenerativa, em absoluto, mas um vazio natural do desmanche de sua construção em torno da dicotomia latente em seu âmago. Sentir-se insignificante era dar muito autossignificância, coisa do ego inflado. Essa constatação no profundo de seu coração ardente lhe informava o equívoco em torno do qual giraram suas ações e pensamentos.
Puxou um novo fio de sua memória e encarou a lembrança de seu grande amor que havia partido. Fugira com seu amante, algo que fez Castor sofrer uma dor terrível, embaralhando suas ideias por um bom tempo.
Mas era tudo passado, levado pelos anos, meses, dias, minutos. Não tinha mais importância para ele a não ser como experiência dolorosa. Arredio, parece que afastou novas experiências amorosas, o que fez com que mergulhasse ainda mais em pesquisas e estudos de sua área de atuação.
A constatação era sábia: dar tanta importância ao sentimento de insignificância era, em si, um ato de ego inflado. Era como um buraco negro que distorcia tudo ao seu redor, sugando a luz de suas conquistas reais. Mas a sabedoria, ele percebia, era fria. Ela diagnosticava, mas não curava. A cura, se é que existia alguma, estava em encarar aquele “vácuo” não como um vazio, mas como o formato de uma ausência específica.
O fio da memória que puxou não era de dor profissional ou acadêmica. Era mais profundo, mais visceral. Era a memória de Clara.
Rascunho – “A Teia e o Nó”
Capítulo Interditado – A Geometria da Ausência
“Escrevo sobre besouros, comitês, ministérios… é mais fácil. Mas o núcleo do meu ‘insignificante significante’ talvez não esteja em nenhum desses lugares. Talvez esteja no dia em que Clara me disse que partia. Não com um homem qualquer, mas com meu colega e, na época, meu melhor amigo. A dupla traição.
Eu não era ninguém para ela. Essa foi a sensação que ficou, uma verdade absoluta e aterradora. Todo o meu valor como homem, como parceiro, foi reduzido a zero naquele instante. O ‘significante’ que eu achava ser – um jovem professor promissor, um bom companheiro – mostrou-se uma ilusão frágil. A ‘insignificância’ que se seguiu não era filosófica; era concreta, física, um desmoronamento.
E o que eu fiz? Mergulhei na ciência. Não por vocação pura, mas por fuga. A zoologia tornou-se meu refúgio, um mundo onde as relações eram previsíveis, classificáveis. O sucesso acadêmico que veio depois não era apenas mérito; era uma vingança silenciosa. Um jeito de gritar ‘Olhem para mim! Sou significante!’, na esperança de que um dia esse eco chegasse aos ouvidos dela, ou, pelo menos, acalmasse o grito de ‘você não é nada’ que ecoava dentro de mim.
Fugi do amor porque temia ser novamente rebaixado à insignificância. E, ao fazer isso, entreguei a chave do meu valor à memória de um abandono. Foi uma covardia. E toda a minha luta posterior, contra comitês e por reconhecimento, era, de certa forma, uma luta para provar para aquela versão mais jovem e traída de mim mesmo que ele, Castor, era alguém.
A caneta tremia em sua mão. Aquelas palavras doíam mais do que qualquer crítica de um colega ou a rejeição de um comitê internacional. Elas desnudavam uma motivação mesquinha e assustadoramente humana por trás de sua grandiosa jornada.
Ele não era apenas o professor sábio e o político idealista. Era também um homem ferido que, por décadas, usou o mundo exterior como palco para uma batalha interior. O “insignificante significante” não era um conceito intelectual; era a história de sua vida emocional. E agora, ao escrevê-la, ao dar forma e nome a essa dor antiga, ele finalmente começava a roubar seu poder. A aceitação não era um fim, mas um novo começo – talvez o primeiro onde ele pudesse, de fato, construir um sentido de valor que fosse verdadeiramente seu, e não uma reação a uma ferida do passado.
Castor era um bom homem, envelhecido pela idade mas ainda jovem de espírito. Tinha a percepção fina de que o que havia de fato em seu coração era um pouco de ser ele demais. Não conseguia disfarçar e ser um pouco um outro personagem que poderia criar. Mas nem todo mundo conseguia essa proeza, precisava ter inclinação para as artes cênicas, algo impensável na mente estruturalista do catedrático senior.
Capítulo da ocupação – Sublimação da mente estruturalista
Fui muito previsível diante da Clara. Ela tinha potencial de se apaixonar por mim como eu dela, mas repeti um script pronto de “bom moço”, de alguém que sabia o caminho a seguir. Isto está certo, mas faltou aquele fogo que eu sentia por ela fluir de um modo mais solto sem me chamuscar demais…
A distância faz um analista. Nem parece que sofri uma perda tão feia neste momento. A história que escrevemos tem sempre eventos e situações sobre os quais colocamos um olhar retrospectivo e vemos o cenário da própria vida que nos estende o livre-arbítrio. O que escolhi foi determinante para marcar o meu destino. Uma camada grossa de significado que importa para continuar sendo importante. Estava começando a entender mais profundamente a minha insignificância em tudo isso.
A revelação era avassaladora em sua simplicidade. Não era sobre Clara, ou sobre o amante, ou sobre a traição em si. Era sobre ele. Era sobre o “script pronto do bom moço”. A persona do acadêmico correto, do intelectual sério, não era apenas uma vocação; era uma armadura. Uma armadura que o impedia de ser “chamuscado” pelo fogo da vida, pela vulnerabilidade do amor verdadeiro, pela imprevisibilidade de ser apenas Castor, com seus medos e desejos bagunçados.
Rascunho – “A Teia e o Nó”
Capítulo da Ocupação – A Armadura de Estudos
“Sempre achei que minha insignificância era uma condição imposta pelo mundo. Agora vejo que foi uma fortaleza que eu mesmo construí. Diante do risco de ser rejeitado, de não ser significante o suficiente para Clara, eu me recolhi na identidade mais segura que tinha: a do estudioso. Era um território onde eu ditava as regras, onde meu valor era mensurável por títulos e publicações.
Chamei de ‘humildade’ o meu medo de me expor. Chamei de ‘foco’ a minha fuga do conflito emocional. Usei a ‘significância’ da ciência como um escudo contra a possibilidade aterradora de ser insignificante no amor. Fui, portanto, um covarde. E paguei o preço por essa covardia com solidão.
E o projeto climático? A luta política? Foram, em sua gênese, uma sublimação monumental desse mesmo conflito. Se eu não podia ser significante num relacionamento a dois, seria significante para o planeta. Era uma ambição tão grandiosa que justificava toda a minha pequenez emocional. Era a ‘camada grossa de significado’ da qual falei, uma camada que eu despejei sobre a ferida para não ter que olhar para ela.“
Ele parou de escrever, ofegante. A análise era impiedosa, mas libertadora. A “insignificância” não era sua inimiga; era sua criação mais íntima. E o “significante” que ele tanto buscou não era uma meta, mas um sintoma.
Olhando pela janela para a floresta que agora cuidava, ele entendeu a lição final. A teia da vida não era feita apenas de besouros e árvores. Era feita também de escolhas, de vulnerabilidades, de riscos não tomados e de dores transformadas em ação. Sua verdadeira significância não estava em ter salvo o planeta – tarefa impossível para um só homem –, mas em ter, finalmente, se encarado no espelho e aceitado a complexidade contraditória de quem era: um homem que, para se proteger da dor de não ser amado, tentou se tornar grande o suficiente para amar o mundo inteiro.
E naquele instante, a dicotomia desmanchou-se. Ele não era insignificante nem significante. Era apenas uma parte ínfima e, ao mesmo tempo, absolutamente única da teia. E isso, percebeu, era mais do que o suficiente. Era tudo. E, sendo tudo, não restava mais nada fora isso. Olhar em retrospectiva dava essa noção de inteireza, as peças se encaixavam naturalmente. O quebra-cabeça estava montado, mas a sua vida não chegara ao fim. Suas memórias deveriam marcar a sua época, a sua própria trajetória que lhe trazia uma espécie de autorredenção.
O manuscrito de “A Teia e o Nó” foi enviado para a editora em uma manhã tranquila. Não houve fanfarra, apenas o clique suave de um email e o profundo suspiro de um dever cumprido. A sensação não era de triunfo, mas de entrega. Ele havia devolvido sua história ao mundo, não para ser julgado, mas para se conectar com outras teias, outros nós em formação.
Marcio Bretas, no Ministério, não apenas manteve o legado, mas o expandiu com um vigor que enchia Castor de orgulho. O “protocolo do insignificante” tornou-se política de estado, replicado em municípios e inspirando nações vizinhas. Castor acompanhava as notícias não mais como um arquiteto ansioso, mas como um observador satisfeito. A obra estava em boas mãos.
E então, Clara voltou. Não de forma dramática, mas através de uma carta. Ela estava no país, cuidando de sua irmã doente, e soube do seu livro. A carta era um pedido de desculpas, um relato de uma vida que também teve seus desvios e arrependimentos. Castor leu as palavras sentado na varanda, o mesmo lugar onde outrora se debruçara sobre gráficos climáticos, tentando prever o futuro.
Ele respondeu. Não com a dor do homem traído, nem com a frieza do acadêmico, mas com a compreensão do velho que ele era. Convidou-a para um café. Ela aceitou.
O encontro foi num jardim botânico. Ela, grisalha e com os mesmos olhos inteligentes. Ele, com sua postura ainda ereta, mas o rosto macio pela aceitação. Conversaram por horas. Falaram de livros, de dores nas juntas, dos netos que ela tinha e dos “netos acadêmicos” que ele considerava ter. A sombra do passado estava lá, mas não como um fantasma, e sim como uma paisagem distante que ambos podiam observar sem precisar revisitá-la.
Ao se despedirem, com um abraço leve e um sorriso de despedida, Castor soube que aquele era o ponto final naquela história. Não por rancor, mas por completude. A ferida antiga não doía mais; era apenas uma cicatriz que contava parte de quem ele se tornara.
De volta à fazenda, Castor caminhou até o limite da floresta que ajudara a regenerar. O ar cheirava a terra e vida. Um besouro rola-bosta trabalhava meticulosamente aos seus pés, totalmente alheio à complexa jornada do homem que o observava.
Castor Di Franco não se sentia mais insignificante. Também não se sentia significante. Ele era um ponto na teia. Um ponto que havia tremido, se fortalecido, se conectado a outros pontos e, no fim, encontrara seu lugar. E isso, percebeu ele enquanto o sol se punha dourado sobre as copas das árvores, era a única e mais profunda vitória possível. A história estava completa.