Liberdade Sadia
A Jornada de Djanira: Da Persona à Essência
Vibe da Sol era o nome que levava a influenciadora digital de bem-estar à frente das câmeras das redes sociais para dizer em alto e bom som: “Liberte-se você da negatividade!”
Sol não era seu nome, e sim Djanira, nome que detestava, mas só para ela. Nunca confrontou seus pais a respeito. Filha única de um casal de comerciantes de vassouras do interior, Sol sempre teve um grau de autonomia razoável, principalmente para decidir o que queria da vida – longe dos estudos universitários, algo que no fundo também abominava, mas só para ela.
À frente da câmera, em um estúdio de gravação de um colega, Maurício, ela gravava o Vibe da Sol sempre com um ar de alegria e gratidão forçadas, pois aqui nada deveria dar errado, nenhuma surpresa, a vida sempre era bela e inefável, com um sorriso de orelha a orelha.
Claro que isso acabava mascarando a própria realidade de Sol, que, como todos, enfrentava problemas de toda ordem, mas que, irremediavelmente, iam para debaixo de seu tapete de radiante felicidade. Ideal que ela vivia tão intensamente a ponto de travar um conflito íntimo através do qual tentava, a seu modo, lidar com a situação de escrava de sua própria persona.
O estúdio de Maurício era seu santuário, um cubículo branco e insonorizado onde a realidade era editada, equalizada e embalada para venda. Na tela do monitor, Sol brilhava, finalizando mais um “Vibe da Sol” com seu mantra característico: “A gratidão transforma o comum em extraordinário. Escolha a luz!”
“E… corte!”, disse Maurício, puxando os fones de ouvido. “Perfeito como sempre, Sol. Esse ficou energético.”
Sol manteve o sorriso por um segundo a mais do que o necessário, um reflexo condicionado. “É só deixar fluir, Maurício. Quando a gente vibra no amor, tudo floresce.” A frase saiu automática, como um jingle que ela não conseguisse desligar.
Mas assim que as luzes fortes do ring light se apagaram, o sorriso desabou como um castelo de areia. A fadiga que ela mantinha à distância com pura força de vontade invadiu seus músculos faciais. Ela se virou para beber água, evitando o próprio reflexo na tela escura do monitor.
Foi quando a tela do celular de Maurício, pousado na mesa de mixagem, acendeu. Um fluxo constante de notificações de um grupo com o nome sugestivo: “Casa da Mãe – Cuidados e Despesas”. Maurício pegou o aparelho com um suspiro fundo, quase inaudível. Seus ombros se curvaram ligeiramente enquanto lia uma mensagem. A expressão em seu rosto era uma que Sol conhecia intimamente, mas se recusava a permitir em si mesma: um peso silencioso e resignado.
A oportunidade para um novo conteúdo brilhou na mente de Sol, automática e profissional. Era a deixa perfeita.
“Maury,” ela começou, a voz ainda com o timbre de apresentadora, mas agora com uma pitada de doçura compassiva. “Percebi uma energia pesada ao seu redor. Lembre-se: os desafios são oportunidades disfarçadas! Que tal transformarmos isso em um conteúdo? ‘Como a Gratidão Pode Iluminar os Cuidados com um Ente Querido’. Podemos gravar um reel rápido! A sua experiência autêntica iria ressoar com tanta gente!”
Ela esperava que ele se iluminasse com a ideia, como sempre acontecia. Em vez disso, Maurício ergueu os olhos do celular. E não havia gratidão neles. Havia uma fagulha de raiva, rápida e contida.
“Autêntica, Sol?”, ele perguntou, a voz estranhamente suave, o que a fez congelar mais do que um grito. “Você quer que eu transforme a minha mãe doente, as contas de hospital e o medo de perdê-la em… conteúdo? Em hashtags?”
O chão sob os pés de Sol pareceu ceder. Ninguém nunca lhe falava daquela forma. Os fãs agradeciam, os haters atacavam, mas ninguém no seu círculo próximo confrontava a lógica fundamental do seu universo. A fachada trincou. Ela sentiu um calor subir pelo pescoço – era vergonha? Raiva? Não sabia nomear, era uma emoção proibida.
“Eu… só quis ajudar”, ela conseguiu dizer, a voz finalmente perdendo aquele brilho artificial. Soou pequena e frágil.
Maurício a observou por um longo momento, vendo a confusão genuína em seus olhos por trás do glitter nas pálpebras. Ele não atacou novamente. Sua voz baixou, tornando-se quase um sussurro cansado.
“Sol, quando foi a última vez que você ficou simplesmente triste? Quando foi a última vez que você sentiu uma raiva justa e deixou que ela queimasse, em vez de apagá-la com incenso e afirmações positivas?” Ele pegou seu casaco. “Às vezes, ajudar não é sobre transformar a dor em algo produtivo. Às vezes, é só sobre… sentar no escuro com alguém. Sem cameras. Sem like.”
Ele saiu, deixando-a sozinha no estúdio silencioso. A única luz era a tela do computador, ainda exibindo a thumbnail do vídeo onde ela sorria, radiante. Pela primeira vez, aquele sorriso lhe pareceu uma careta vazia. Ela olhou para o celular, onde uma notificação do seu banco avisava sobre uma fatura vencida. Olhou para a bolsa, onde guardava em segredo os exames médicos que insistia em ignorar, classificando a preocupação como “baixa vibração”.
As palavras de Maurício ecoavam naquele silêncio: “Sentar no escuro com alguém.” Ela olhou para sua própria imagem no monitor e uma pergunta horrível e libertadora brotou em sua mente, a primeira pergunta verdadeira em anos: Com quem eu posso sentar no escuro?
Naquela noite, Djanira, isto é, Sol, sentou-se à escrivaninha de seu quarto para escrever o roteiro do próximo programa da “Vibe da Sol”. Ela sempre o fazia, mas, desta vez, estava visivelmente tensa e incomodada com o que havia se passado no estúdio junto com Maurício. As palavras dele tinham sentimento, suas dificuldades com a mãe, gastos extras, entre outras coisas, certamente mexeram com sua cabeça. Ele havia mostrado uma faceta que ela mesmo negava e desconsiderava, mas que no fundo reconhecia ser legítima, afinal ter a mãe adoecida mexia mesmo com a cabeça de qualquer filho.
De repente, um pensamento atravessou seu semblante e o transfigurou: “E se ela estivesse doente também?”. Aqueles exames médicos chafurdando no fundo de sua bolsa poderiam querer dizer algo e isto poderia ser importante. Ficou com isso na cabeça mesmo depois de a descansar devagar sobre o travesseiro.
Levantou pela manhã, pintou-se e saiu sem tomar café. Foi até a casa da irmã mais velha que era médica. Queria pegá-la antes de ela ir para o hospital onde trabalhava. Havia resolvido mostrar para ela os exames médicos que temia vê-los, como se ali se escondesse um grande perigo. Mas Sol não sabia o que era ficar vulnerável, tal sensação era cortada com aquele seu sorriso de inabalável positivismo, que só foi retirado de seu rosto quando a irmã Denise, olhando os exames, lhe disse em seguida virando-se a ela:
“Sol! Você precisa ir para o hospital imediatamente!”
A voz de Denise não carregava o tom profissional e contido que Sol conhecia. Era um fio de alarme puro, quase um susto. As palavras não eram um conselho; eram um diagnóstico e uma ordem fundidos em uma só sentença.
“Sol! Você precisa ir para o hospital imediatamente!”
O coração de Sol deu um salto violento contra as costelas e pareceu parar. O sorriso, sua armadura automática, tentou se formar em seus lábios, mas falhou, resultando em um espasmo trêmulo e sem graça.
“Denise, calma, respira…”, ela ouviu a si mesma dizer, ecoando mecanicamente suas próprias frases-prontas. “Tudo na vida tem um propósito. Vamos encontrar o aprendizado nisso.”
Denise baixou os exames e fitou a irmã mais nova com uma expressão que Sol não via há anos: uma mistura de medo, incredulidade e uma ponta de raiva.
“Pare, Sol! Pare com isso!”, a voz de Denise trincou. “Isto não é um coaching de vida, é um laudo médico! Seus níveis de cortisol estão tão altos que parecem de alguém em estado de choque constante. Sua tireoide está em colapso, seus anticorpos estão atacando o seu próprio corpo! Isto é sério. Isto é… possivelmente uma doença autoimune rara, desencadeada por anos de estresse crônico não gerenciado.”
Cada palavra era como um martelo batendo na placa de vidro de sua persona. Estresse crônico. Colapso. Ataque do próprio corpo. Ela, que pregava a harmonia entre mente e espírito, estava literalmente em guerra contra si mesma.
“Mas… eu não sinto dor”, ela argumentou, fracamente, como uma última trincheira.
“É claro que não sente!”, Denise foi implacável, mas agora com uma fadiga pesada na voz. “Você anestesiou tudo. A positividade tóxica é um analgésico de longo prazo, Djanira. Ele não cura a ferida, só te ensina a ignorar o cheiro de podre. O seu corpo não aguentou mais gritar que você não ouvia.”
O uso do seu nome de batismo, “Djanira”, aquele que ela renegava, doeu mais do que qualquer termo médico. Era a irmã mais velha, que a via crescer, chamando a criança assustada que havia por trás da influencer solar.
O mundo de Sol desabou. Não de forma barulhenta, mas com um silêncio ensurdecedor. Ela olhou para as próprias mãos, que começaram a tremer incontrolavelmente. A sala arrumada e perfumada de Denise, com seus diplomas na parede, de repente parecia um tribunal.
Ela havia se mudado sozinha há um ano. Aquele apartamento minúsculo era seu maior troféu, a prova tangível de sua independência e sucesso. Ela se orgulhava de pagar todas as contas, de montar seus próprios móveis, de não precisar de ninguém. Agora, aquela independência parecia uma piada de mau gosto. Como seria independente se não conseguia nem manter seu próprio corpo saudável? Quem era aquela pessoa forte se um pedaço de papel a reduzira a um punhado de tremores e uma vontade súbita e avassaladora de chorar?
As lágrimas, finalmente, vieram. Não foram as lágrimas cinematográficas e esteticamente perfeitas que ela às vezes produzia para as câmeras. Foram um pranto feio, gutural, que a dobrou ao meio no sofá de Denise. Um som que ela mesma não reconhecia saiu de sua garganta – era o ruído da sua própria fachada desmoronando.
“Eu tenho medo, Denise”, ela sussurrou, a voz irreconhecível, afogada em lágrimas. “Eu tenho muito medo.”
Era a primeira vez que ela admitia isso em voz alta, para outra pessoa e para si mesma. Não havia hashtag, não havia mindfulness, não havia gratidão. Havia apenas uma mulher assustada, com um corpo doente e uma alma exausta, sentada no escuro. E, pela primeira vez em anos, ela não estava tentando acender uma luz artificial. Ela estava apenas… sentindo o escuro.
Denise não tentou consolá-la com palavras vazias. Sentou-se ao seu lado, puxou a irmã para o colo e ficou em silêncio, acariciando seu cabelo. Era exatamente o que Maurício havia dito: sentar no escuro com alguém. Naquele colo, no meio do desespero, um pequeno e frágil broto de algo novo nascia: a permissão para ser frágil. E era a partir dessa fragilidade admitida, e não da força forçada, que uma força verdadeira e desconhecida começaria, muito lentamente, a brotar.
Sol ocultou seu brilho reluzente de dentes brancos e no lugar apareceu uma mulher frágil e doente que deu entrada no hospital Souza Ramos. Ali com ela havia uma alma que momentaneamente se acabrunhava de tal maneira que deixava seu corpo ainda mais enfraquecido, a mente produzindo pensamentos negativos e desencontrados, na direção oposta ao que ela pregava diariamente nas redes sociais com o seu podcast “Vibe da Sol”. Ela sentia como que houvesse uma colisão íntima, entre dois lados opostos que disputavam a supremacia, agora com maior vantagem para a avalanche de negativismo que havia tomado conta dela.
“Quarto 445, no quarto andar, moça”, disse a atendente, gesticulando e se encaminhando com ela para o elevador. Sol não sentia dor física, mas parecia bombardeada emocionalmente. O baque havia sido sentido nas palavras de Denise, sua irmã. Era como se tudo isso fosse uma sucussão na sua realidade, sacudindo tudo dentro dela e invertendo-se as posições. Aquilo que ela negava sentir vinha agora trazendo uma conta para que ela pagasse à custa de bastante sofrimento. Sua aura positiva estava sendo arranhada miseravelmente. Temia, no fundo, que algum daqueles haters que escreviam nos comentários de seus podcasts palavras de baixo calão quando senão de pura inveja, descobrissem que ela estava agora internada em um hospital.
A culpa a atormentou de modo nunca antes visto. Sol se sentia culpada por expressar quase que uma imunidade completa para o sofrimento, afinal até mesmo isso continha propósito, ela acreditava, portanto, nunca fora sentido de outro modo, digamos, mais realista. No campo das ideias, ou do idealismo ingênuo, ficava evidente que em sua alma apregoar o positivismo negando intimamente o “outro lado” agora lhe trazia um teste acima do que ela podia suportar. “Desafios são oportunidades de crescimento”, ela se ouviu novamente, logo que entrou e viu o quarto, a cama alvíssima, o cheiro de lavanda emanando da recente limpeza do local. “Eu vou ter que fazer uma live antes de qualquer tratamento”.
A frase “Eu vou ter que fazer uma live antes de qualquer tratamento” ecoou em sua mente não como uma decisão, mas como um reflexo de sobrevivência. Era o último suspiro de “Sol”, a persona, tentando se reafirmar diante do colapso de Djanira, a pessoa.
Enquanto a enfermeira a ajudava a trocar de roupa e se deitar na cama alvíssima, os pensamentos de Sol giravam em um turbilhão de pânico produtivo.
“Preciso me maquiar. O ring light portátil está na bolsa? O celular tem bateria. Posso usar o fundo branco do hospital, dizer que é um fundo novo, minimalista… ‘Conexão de Luz no Momento Presente’. Focar na respiração… sim… respirar…”
Mas quando ela tentou respirar fundo, um soluço preso a interrompeu. Suas mãos, ao invés de firmes para segurar o celular, tremiam como folhas. Ela as observou, hipnotizada, como se pertencessem a outra pessoa. Eram as mãos de uma fraude.
“Desafios são oportunidades de crescimento”, ela sussurrou para o teto, mas as palavras soaram ocos, como um feitiço que perdeu seu poder. A frase não a acalmou; a acusou. Crescimento para onde? Ela estava se desintegrando.
Foi então que Denise entrou no quarto, acompanhada de um médico de meia-idade, cujo olhar era calmo mas incisivo. Ele segurava uma prancheta e a tela de um tablet.
“Djanira, este é o Dr. Tavares”, disse Denise, sua voz suave mas firme.
“Sol”, ela corrigiu automaticamente, fraco.
O médico sorriu de forma polida, mas não cedeu. “Djanira, analisamos seus exames iniciais e seu histórico. Confirmamos que se trata de uma crise severa de uma condição autoimune, agravada por esgotamento psicofisiológico. O protocolo é imediato: iniciaremos corticoides via intravenosa para conter a inflamação e repouso absoluto. Absoluto“, ele enfatizou, olhando para ela como se pudesse ler seus pensamentos de live. “Isso significa zero estímulos estressantes. Nada de trabalho, nada de discussões, e, especialmente, nada de redes sociais.”
As palavras caíram como uma sentença. Zero estímulos estressantes. Sua carreira, sua identidade, seu valor no mundo era um “estímulo estressante”.
“Mas… doutor… eu preciso… me comunicar com minha comunidade”, ela argumentou, a voz um fio de esperança desesperada. “É minha responsabilidade. Posso fazê-lo de forma leve, prometo. Só uma live rápida para acalmar todos.”
Dr. Tavares inclinou a cabeça, estudando-a não como fã, mas como um sintoma. “Djanira, o seu corpo já deu o seu recado. Ele está em greve. A ‘leveza’ que você propõe é, para o seu sistema nervoso, o equivalente a correr uma maratona. Se você fizer essa tal live, não estará ‘acalmando’ ninguém. Estará assinando um atestado de internação prolongada, com riscos reais de danos mais permanentes. A escolha é sua.”
A frustração, um sentimento que ela sempre classificava como “baixa vibração” e empurrava para longe com afirmações positivas, brotou com uma força vulcânica. Era quente, amarga e incontrolável. Lágrimas de raiva e impotência empoçada em seus olhos. Ela não conseguia! Ela, que se vendia como a mestra do próprio destino, era impotente contra as próprias células.
“É… é injusto”, ela gaguejou, a voz quebrada, dirigindo-se a Denise. “Eu construí tudo sozinha. Minha independência, minha carreira… e agora eu não posso nem falar?”
Denise se sentou na beira da cama e pegou sua mão trêmula. “DJ,” ela disse, usando a abreviação de infância que Sol não ouvia há uma década. “Agora não é sobre ser forte para os outros. É sobre ser sábia para você. A verdadeira força não é aguentar tudo calada e com sorriso. A verdadeira força é ter a coragem de parar.”
A enfermeira chegou com o soro e o equipamento para a veia. O objeto metálico e frio do cateter sob sua pele foi a confirmação física e dolorosa de sua prisão. Ela estava acorrentada àquela cama não apenas pela doença, mas pela verdade.
Ela olhou para o celular, piscando com notificações de fãs perguntando onde estava o “Vibe da Manhã”. Era um mundo paralelo, um universo de ilusão do qual ela estava exilada.
A live não aconteceria. O “Vibe da Sol” estava em silêncio. E, naquele silêncio forçado, começou o ruído mais assustador e necessário de sua vida: o som de sua própria humanidade, quebrada e real, clamando para ser ouvida. O remédio amargo da impotência começava a ser administrado, gota a gota.
“Bom dia! Como você está hoje?”, foi a pergunta de Maria Célia, a enfermeira do andar logo pela manhã, enquanto entrava no quarto de Sol, trazendo medicação para ela.
Sol estava meio sonolenta e estonteada, a noite tinha sido repleta de monstros cruéis que invadiram seus sonhos transformando-os em cenas de filme de terror. Seu olhar via uma mulher de branco, trazendo uma terrível arma pontiaguda pronta a assaltar seu braço e deixá-la estatelada naquela alvíssima cama de hospital.
“Não! Não! – gritou ela, assustadíssima. “Fora daqui, Medeia!” – Sol nem fez ideia do nome que havia chamado Maria Célia, que tentou se aproximar, mas viu no olhar diabólico de Sol que se desse um passo mais, seria alvejada por um raio lancinante de pavor.
Parou diante de Sol por instantes e fixou o olhar nela como que a reconhecendo, enquanto abria um riso denunciador.
“Você não é a Sol, da Vibe da Sol?” – perguntou já com noventa e nove por cento de certeza. Sol, por seu lado, ‘acordou’ de sua conexão de terror ao ouvir o nome de seu querido podcast e o um por cento de confirmação de que era ela a Sol da Vibe da Sol rebrilhou no olhar de Maria Célia.
Elas então conversaram, Sol ficou mais calma, e acabou aceitando tomar a medicação trazida pela enfermeira. Até tiraram uma selfie as duas e para Sol foi um alívio encontrar uma espectadora de seu podcast justamente naquele hospital.
O encontro com Maria Célia foi como um oásis em seu deserto de medo. Por alguns minutos, Sol não foi uma paciente aterrorizada; foi uma influencer novamente, reconhecida e admirada. A selfie que tiraram, com Sol ainda pálida mas forçando um sorriso familiar para a câmera, foi um bálsamo. Era a prova de que “Sol” ainda existia sob os escombros de Djanira.
“Vou postar no meu stories”, disse Maria Célia, digitando animada. “Minhas amigas não vão acreditar! A Sol está tão forte, enfrentando tudo com tanta luz!”
Uma pontada de ansiedade cortou o peito de Sol. Enfrentando com luz? Ela mal conseguia enfrentar a sombra de uma enfermeira. Mas o hábito de aprovar qualquer coisa que alimentasse sua marca foi mais forte.
“Que tal uma legenda positiva?”, Sol sugeriu, o piloto automático entrando em ação. “Algo como… ‘Encontrando luz mesmo nos caminhos mais desafiadores. Gratidão por anjos como a Maria Célia!'”
“Perfeito!”, exclamou a enfermeira, postando na hora.
Mal ela saiu do quarto, o alívio de Sol começou a se transformar em agonia. Ela pegou seu celular, que estava no modo avião por ordem médica, mas que ela não conseguia deixar de olhar. Conectou-se hesitante ao wi-fi do hospital.
A notificação do stories de Maria Célia foi uma das primeiras coisas que viu. E os comentários começaram a chover.
Os primeiros eram de fãs genuínos:
“Nossa, Sol, melhoras! Te amamos! ❤️”
“Que força inspiradora! 🙏”
Mas logo, como uma maré suja, vieram os outros.
“Hipócrita. Passou a vida pregando que doença é falta de gratidão e agora está aí, internada.”
“Karma? O positivismo tóxico não colou, né, mô?”
“Tá vendo, gente? Até a ‘Sol’ fica doente. Toda essa baboseira de lei da atração é balela para vender curso.”
“Que ‘luz’ é essa? Tá mais para a UTI do que para o jardim da vibração alta.”
Cada comentário era como uma agulha no braço já dolorido daquela que vivia à imagem de uma persona como Sol. Eles não estavam atacando Djanira, a mulher doente. Estavam atacando “Sol”, a persona que ela havia gasto anos construindo. A persona que, ela agora percebia com um frio na espinha, era tão frágil quanto seu corpo.
O pior veio quando uma página de fofoca digital, especializada em “cair a ficha” de influencers, repostou a selfie com a legenda:
“CAIU A FICHA? Sol, a guru do positivismo, é hospitalizada com crise severa. Será o fim da ‘Vibe’?”
Era uma manchete. Sua vulnerabilidade havia se tornado um espetáculo público.
Ela quis responder. Quis fazer uma live na hora, explicar, defender-se, sorrir e dizer que tudo estava perfeitamente alinhado pelo universo. Mas seu corpo traiu sua vontade. Um acesso de tosse seca a dobrou na cama, e uma dor de cabeça latejante explodiu atrás de seus olhos. Ela estava fisicamente incapacitada de manter sua própria mentira.
Dr. Tavares entrou no quarto nesse momento, viu-a pálida e ofegante, segurando o celular como se fosse uma serpente. Ele olhou para a tela, viu a confusão e, com um suspiro, pegou o aparelho de suas mãos trêmulas.
“Eu avisei, Djanira”, disse ele, sem dureza, mas com uma firmeza absoluta. “O mundo lá fora é um veneno para você agora. Esta persona… esta ‘Sol’… ela está te matando. A escolha é brutalmente simples: você quer salvar a personagem ou salvar a sua vida?”
Ele desligou o celular e colocou-o na gaveta do criado-mudo, fechando-a com uma chave que guardou no bolso.
Sol não teve forças para protestar. Ela se encolheu na cama, as lágrimas escorrendo silenciosas. A selfie que era para ser um alívio havia se tornado sua sentença. Ela estava presa, não apenas no hospital, mas em uma cela de sua própria criação, obrigada a assistir ao julgamento público de sua persona enquanto a pessoa real, Djanira, lutava para não desaparecer de vez. A liberdade, ela começava a entender, talvez só chegasse quando “Sol” finalmente desistisse de lutar.
A febre trouxe um crepúsculo interior. Já não era mais o pânico agudo dos primeiros dias, mas um estado crepuscular onde a persona "Sol" se dissolvia como açúcar na água, deixando para trás um sabor amargo e fundamental: o de Djanira.
Foi nesse estado de esgotamento translúcido que ela viu a figura de sua mãe, Dona Marlene, parada na porta do quarto. Não trazia flores coloridas ou presentes vibrantes. Trazia na mão um pequeno pote de vidro com um doce de laranja-da-terra — aquele que Djanira adorava na infância e que "Sol" classificara como "açúcar refinado e energia pesada".
"Mãe," Djanira disse, e a palavra saiu rouca, despojada de qualquer entonação performática.
Dona Marlene se aproximou, seus olhos — tão acostumados a enxergar o peso real das vassouras que vendia — percorreram a filha, do rosto pálido aos braços fincados com agulhas. Não havia reprovação em seu olhar, mas uma tristeza sólida e antiga.
"DJ," ela disse, usando o mesmo apelido que Denise. Sentou-se pesadamente na poltrona ao lado da cama. "Sempre achei esse negócio de 'Sol' uma coisa esquisita. Djanira é um nome bonito, de rainha. Mas você quis ser um astro… esqueceu que astro queima."
Era a primeira vez que sua mãe falava tão diretamente. Sem o filtro da paciência, sem a concessão ao "sonho da filha". A frase caiu sobre Djanira não como um ataque, mas como um diagnóstico preciso.
"Eu… eu só queria ser luz," Djanira sussurrou, virando o rosto para o lado, uma lágima solitária escorrendo pelo rosto em direção ao travesseiro.
"Luz de que, minha filha?" Dona Marlene perguntou, voz suave mas incisiva. "Luz de verdade aquece. A sua… a sua só ofuscava. Até você mesma não enxergava mais nada."
O silêncio que se seguiu não era cômodo, era ativo. Djanira sentiu a verdade daquelas palavras ecoando no vazio que "Sol" havia deixado. Ela não estava se curando; estava desintoxicando.
Nesse momento, o Dr. Tavares entrou, acompanhado de um homem mais velho, vestindo um paletó de tweed e com um olhar sereno que parecia enxergar camadas.
"Djanira, Dona Marlene," cumprimentou o clínico. "Gostaria de lhes apresentar o Dr. Omar. Ele é homeopata unicista e integra nossa equipe de medicina integrativa. Pensei que sua abordagem poderia ser… interessante para o seu caso."
Dr. Omar cumprimentou-as com um aceno de cabeça e fitou Djanira. Seu olhar não era o de quem analisava uma doença, mas de quem observava uma totalidade em desequilíbrio.
"Homeopatia?" Djanira perguntou, fracamente. "Isso não é… placebo?"
O médico sorriu, sem ironia. "É uma pergunta comum. A homeopatia unicista não trata o sintoma, Djanira. Trata a desarmonia da força vital que permitiu que o sintoma se manifestasse. É como se a sua energia vital, para nos comunicar um profundo desequilíbrio, tivesse criado esta crise. Uma crise que é, no fundo, um grito por totalidade."
Ele fez uma pausa, seus olhos parecendo ler a história inscrita em seu cansaço.
"Pelo que o Dr. Tavares me contou e pelo que percebo, você passou anos vivendo como uma caricatura de si mesma. Uma persona excessivamente solar, expansiva, positiva. Na linguagem homeopática, você foi intoxicada por uma energia que imita a vida, mas não a sustenta. A cura, portanto, não virá de combater a doença com mais força. Virá de um remédio que espelhe essa mesma energia desequilibrada que você incorporou — uma dose mínima, dinamizada, para que seu sistema vital reconheça o padrão do desequilíbrio e, reconhecendo-o, possa finalmente se reorganizar e expulsá-lo."
Djanira ficou em silêncio, a metáfora ecoando fundo. A persona "Sol" não era o oposto da doença; era a própria doença numa fase anterior. A doença física era a materialização final do seu falso eu. A cura homeopática soava como um convite paradoxal: para se curar, ela teria que encarar a própria sombra que ela mesma havia criado.
"Dr. Omar, o senhor está me dizendo que a minha Sol é a doença que eu preciso combater?" - A voz de Djanira emitiu um agudo de inconformismo mesclado com penúria, uma fraqueza se evaporando da alma quebrantável.
O médico homeopata acenou afirmativamente com a cabeça, enquanto se aproximou de Djanira, sempre buscando manter um sorriso amistoso no rosto. Conversaram por um tempo e era possível notar o interesse do médico homeopata em confortar Djanira, explicando, tanto quanto possível, algumas lógicas homeopáticas, a fim de que ela pudesse compreender o sentido dessa força cega, irrefletida e não inteligente que é a força vital quando fora de compasso no organismo, impactando diretamente a saúde da pessoa.
Dr. Omar disse ainda que voltaria mais tarde para continuar a conversa com Djanira e saiu. Dona Marlene então assumiu o posto do médico e ficou ali na companhia da filha, que lhe perguntou:
"E aí, mãe, o que acha da Homeopatia?"
"Cura pelo espelhamento", respondeu Dona Marlene.
"Como assim?", indagou a filha, franzendo a testa.
"Pelo que entendi do Dr. Omar, trata-se de não combater o sintoma, mas de espelhar a sua forma de ação".
"Ah, mãe, a senhora está muito 'médica' para meu gosto!"
Dona Marlene sorriu e fez Djanira imitá-la.
"Entendi agora", disse Djanira. "O seu riso e depois o meu, o espelhamento..."
Dona Marlene pegou na bolsa um espelhinho de maquiagem e estendeu à filha.
"Olhe-se, querida. Veja-se de verdade quem você é."
Djanira pegou o espelhinho entre a perplexidade e o interesse. Mirou-se no espelho e viu "outra pessoa". Será que estava mesmo se vendo de verdade agora?
O rosto no espelho não era o de "Sol". Os cabelos estavam opacos, os olhos, fundos e cercados por olheiras, guardavam um vestígio do pânico recente. A boca, acostumada à curva perpetua do sorriso, repousava em uma linha neutra e cansada. Era um rosto despojado, vulnerável e… verdadeiro. Djanira não via aquela mulher há anos. Ela havia sido soterrada sob camadas de glitter, ângulos favoráveis e sorrisos calculados.
"Quem é você?", ela sussurrou para o reflexo.
A pergunta ecoou na quietude do quarto. Não era uma pergunta de desespero, mas de genuína curiosidade. Pela primeira vez, ela não estava buscando a persona. Estava buscando a pessoa.
Foi nesse estado de rara autenticidade que o Dr. Omar retornou, batendo levemente na porta antes de entrar. Ele percebeu imediatamente o espelho na mão dela e o ar contemplativo em seu rosto. Um leve sinal de aprovação cruzou seus olhos.
"O autorreconhecimento é o primeiro e mais poderoso remédio," ele comentou, sentando-se. "A força vital verdadeiramente não é cega, Djanira. Ela é inconsciente. O que a homeopatia faz, e o que a vida muitas vezes faz de forma mais brutal, é trazer à consciência o que estava em desarmonia. A crise que você vive não é um fracasso. É uma tentativa desesperada de seu organismo de voltar ao equilíbrio."
Djanira baixou o espelho, fitando o médico. A resistência inicial dava lugar a um fascínio temeroso.
"O senhor disse que eu preciso espelhar a doença. Que a 'Sol' era a toxina." Ela engoliu seco. "Como é… como é tomar um remédio que é um espelho? O que eu vou sentir?"
Dr. Omar inclinou a cabeça. "Cada pessoa experiencia de uma forma única. Mas, em essência, o remédio homeopático correto pode provocar uma crise de cura. Não é uma piora da doença, mas uma agudização temporária dos sintomas, seguida por uma reorganização. É como se o corpo, ao receber a imagem dinamizada do seu desequilíbrio, dissesse: 'Ah, isso é o que estávamos tentando expulsar!' E então, com clareza, ele inicia o verdadeiro trabalho de limpeza."
Ele fez uma pausa, medindo suas palavras.
"Mental e emocionalmente, isso pode se manifestar como uma onda de memórias, emoções ou insights que você reprimiu para sustentar a 'Sol'. Pode ser desconfortável. Pode ser assustador. Mas é a sombra saindo do armário para, finalmente, ser integrada. A 'luz' que você buscava, Djanira, não vem de negar a escuridão, mas de iluminá-la. A verdadeira força vital é aquela que consegue conter ambos: o dia e a noite."
Djanira sentiu um calafrio percorrer sua espinha. As palavras do médico não soavam como um jargão esotérico, mas como a descrição exata do terremoto que já estava acontecendo dentro dela. A persona "Sol" não estava sendo combatida; estava sendo dissolvida pelo ácido da sua própria verdade.
Ela olhou novamente para o espelho. A mulher pálida a observava. E, pela primeira vez, Djanira não sentiu vontade de maquiá-la, de iluminá-la artificialmente ou de forçá-la a sorrir. Sentiu uma centelha de… compaixão. Por aquela mulher cansada. Por aquela mulher assustada. Por Djanira.
Ela não estava "se apagando". A persona "Sol" é que era um incêndio consumindo tudo. O que restava eram as cinzas férteis, e delas, uma semente minúscula e tenaz começava a germinar. A semente de uma liberdade que ela nunca conhecera: a liberdade de ser inteira.
Djanira começou a chorar. Sorte que Dr. Omar estava ali quando isto aconteceu.
"Isso é só um sintoma de seu estado, Djanira", disse ele, parado à sua frente, um tanto sem graça com a situação. "Garanto que esse seu estado emocional vai passar depois que tomar o similimum. É o remédio que vai despertar a sua força vital a reagir. Acredite, vai dar certo".
Djanira abriu um sorriso entre lágrimas empoçadas no rosto. Sentia bem no fundo da alma uma confiança naquele médico que tinha brilho nos olhos, o que fê-la sorrir ainda mais. A crença que poderia dar a volta por cima de verdade lhe cobriu o espírito, diferente daquele positivismo inócuo e superficial que a "tal de Sol" inventara para lhe ludibriar. Era a sua própria doença que operava por ela. Dr. Omar estava apontando para isso de forma clara e inequívoca.
"Perfeito, Djanira", irrompeu o médico homeopata como se fosse fulminado por um lampejo criativo. "Podemos começar com o Medorrhinum. Única dose." Dr. Omar estava pensando no que este medicamento produzia para um quadro de perda de identidade, com dificuldade em reconhecer a si mesmo, de modo que estava convicto que era o similimum de Djanira. Seria então um adeus à apresentadora de podcast Sol, e por conseguinte sua "Vibe da Sol"?
Maria Célia entrou no quarto de Djanira, trazendo o remédio homeopático citado pelo médico. Djanira o tomou e disse para Maria Célia que estava deixando a Vibe da Sol.
"Mas por quê?", quis saber a outra, com uma expressão intrigada.
"Por que é chegada a hora", respondeu Djanira, visivelmente triste. Mas era uma tristeza consciente, de quem sabe que está triste porém consciente de sua afirmação. "Vou me curar e ser o que sou de verdade", completou num tom realista.
Maria Célia balançou a cabeça como que concordando com a paciente. Engoliu as palavras que estavam na ponta da língua, como que sabendo respeitar o momento da outra.
A tristeza consciente que Djanira sentira ao anunciar o fim da "Vibe da Sol" foi a última emoção clara que ela pôde nomear.
Nas horas seguintes, uma névoa densa começou a descer sobre sua mente.
Ela tentou relembrar o rosto de Maurício, seu amigo e cúmplice de estúdio, e a imagem que vinha era borrada, como uma fotografia desfocada. Tentou se lembrar do roteiro de seu último podcast, e as palavras haviam se desfeito, deixando apenas um eco de frases vazias: "gratidão… luz… vibrar no amor…" Soavam como um idioma estrangeiro que ela outrora decorou, mas cujo significado real sempre lhe escapara.
"Maria Célia?", ela chamou, quando a enfermeira entrou para ver seus sinais vitais. "O que… o que eu estava falando antes de você sair?"
"Você disse que ia se curar e ser quem é de verdade, Djanira", respondeu a enfermeira, com suavidade.
Djanira a fitou, perplexa. "Eu disse isso? Parece… parece algo que faz sentido. Mas não me lembro de ter dito." Um frio a percorreu. Era como se suas memórias mais recentes estivessem escritas em gelo, derretendo sob um sol que ela já não conseguia nomear.
A confusão mental era a pior parte. Ela pegou o copo d'água e, por um momento, ficou paralisada, sem saber se deveria bebê-lo ou usá-lo para lavar as mãos. A sequência lógica das ações simples havia se desintegrado. O pânico, aquele velho conhecido, começou a rosegar as bordas de sua consciência. "Estou piorando. Estou enlouquecendo", pensou, e a ideia a aterrorizou mais do que qualquer diagnóstico físico.
Foi nesse estado de desorientação crescente que o Dr. Omar apareceu na porta. Ele não pareceu alarmado. Seus olhos, na verdade, brilharam com um foco aguçado, como aquele de um detetive que finalmente encontra a pista mestra.
"Djanira", ele disse, aproximando-se. "Conte para mim. O que você está sentindo, exatamente?"
"Eu… não consigo me lembrar", ela admitiu, a voz trêmula de frustração e medo. "As palavras fogem. Minhas ideias são… são confusas. É como se eu estivesse perdendo meus pedaços, doutor. Isso é o remédio? Isso é… normal?"
Dr. Omar assentiu, um gesto calmo e profundo. "É a ação do medicamento. O Medorrhinum, em sua essência, lida com questões profundas de identidade, com a sensação de ter uma 'mancha' original, uma corrupção no cerne do ser que se tenta esconder com uma fachada perfeita e, por vezes, excessivamente expansiva – exatamente a persona 'Sol' que você criou. O remédio não está te deixando doente, Djanira. Ele está desfazendo o seu estado doente."
Ele puxou uma cadeira e sentou-se próximo à cama, sua voz tornando-se um fio condutor na sua confusão.
"O que você chama de 'perder seus pedaços' é, na verdade, a dissolução da estrutura rígida que você ergueu para se sustentar. A dificuldade de memória e a confusão são a sua mente, intoxicada por anos de autoengano, finalmente se permitindo desmontar. É assustador, eu sei. Mas é necessário. Para encontrar quem você é de verdade, a persona falsa precisa primeiro se desfazer. É uma crise de cura, Djanira. O caos que precede a verdadeira ordem."
Ele a fitou com intensidade.
"Permita-se flutuar nessa névoa. Não lute para se lembrar quem 'Sol' era. Ela era o sintoma. A pessoa que você está se tornando, a Djanira que está emergindo dessas cinzas… ela não precisa se lembrar de tudo. Ela só precisa ser. Pela primeira vez, o seu corpo e a sua mente não estão lutando contra a sua verdade. Eles estão, juntos, trabalhando para expulsá-la."
Djanira ouviu, ofegante. O terror começou a dar lugar a um entendimento profundo e visceral. A escuridão não era o fim. Era o parto. Estava nascendo de novo, lembrou-se de que nascer era um encanto para ela, desde criança, uma perguntadora de tudo, uma menina que tinha graça e sonho de ser apenas uma menina que pudesse ser primeiro menina antes de criar um fantoche tão enganador quanto "Sol". Abriu bem os olhos e viu essa menina acordar para ser o que era. E o que ela é agora? A questão dramática fazia-a triste e melancólica. Mas ao mesmo tempo servia-lhe como um bálsamo de consciência e despertar para a realidade. Ela começava a entender o que estava acontecendo de fato e em torno dela, Djanira, e não mais "Sol", que desaparecia à sua frente como um golpe de vento. Era doloroso ver-se nesse estado, ela o sentia fundo, mas via a necessidade de se limpar dessas "vestimentas" com as quais se vestiu por tanto tempo. Nascer. Sim, ela nascia de novo agora.
A aceitação não veio como um clarão, mas como o lento raiar do sol após uma noite tempestuosa. Djanira parou de lutar contra a névoa. Em vez de se agarrar às memórias que escorriam entre seus dedos, ela as observou irem embora, como folhas carregadas por um rio. E, no espaço vazio que ficou, algo novo começou a brotar.
O Dr. Omar observava sua paciente com a serena expectativa de um jardineiro que vê o primeiro broto romper a terra. Ele explicou a ela a Lei de Cura de Hering, os princípios que guiam uma verdadeira recuperação.
"A cura segue uma direção, Djanira", ele disse, seus dedos traçando um caminho imaginário no ar. "De dentro para fora. A doença instalou-se no seu cerne, na sua identidade, e manifestou-se fisicamente. A cura deve refazer o caminho inverso. Primeiro, a paz interior que você está encontrando. Depois, a reorganização mental. Por último, o corpo se libertará dos sintomas."
Djanira sentia isso acontecer. A confusão mental, que era um pânico cego, transformou-se em um silêncio profundo. E desse silêncio, emergiram memórias que não eram da "Sol", mas de Djanira. O cheiro da terra molhada no quintal de sua infância. O sabor azedo do doce de laranja-da-terra que sua mãe fazia. O som da voz de seu pai cantarolando no fundo da loja de vassouras. Eram memórias simples, terrosas, desprovidas de brilho artificial, mas carregadas de uma verdade que a aquecia por dentro.
"De cima para baixo", continuou o Dr. Omar. "Os sintomas mais importantes – a desorientação, o pânico existencial – estão se dissipando primeiro na sua mente. A clareza que você sente agora no espírito é o sinal primário. A força descerá para o corpo."
E de fato, uma manhã, Djanira acordou e percebeu que a dor de cabeça latejante havia se tornado uma lembrança. A fraqueza nos membros, que a prendia à cama, dava lugar a um desejo tímido de se levantar e caminhar até a janela.
"E, por fim, na ordem inversa do seu aparecimento", ele concluiu. "Os problemas mais recentes cedem primeiro. A crise autoimune aguda está recuando. E, ao recuar, pode trazer à tona, de forma breve e menos intensa, ecos de questões mais antigas que você ainda precisa integrar. Não tema. É a força vital, agora robusta, fazendo a limpeza final."
Foi então que Djanira pediu para sentar no jardim do hospital. Pela primeira vez, ela não queria a luz artificial do estúdio ou o brilho filtrado de uma tela. Ela queria o sol verdadeiro.
Sentada em um banco, com o rosto voltado para o céu, os raios de sol aqueceram sua pele. Era um calor diferente. Não queimava, não ofuscava. Penetrava, suave e profundamente, como um bálsamo. Ela fechou os olhos e não viu a persona "Sol". Viu a menina Djanira, que amava o cheiro da terra e o sabor das frutas simples. E entendeu: ela nunca precisou ser o sol. Bastava permitir que a luz do sol verdadeiro a tocasse.
Ela não era um astro. Era um jardim. E, após o inverno rigoroso de sua alma, suas flores mais autênticas começavam a desabrochar. A "Vibe da Sol" estava morta. Mas Djanira, pela primeira vez em uma década, estava viva. E a luz que emanava dela não era um refletor, mas uma luminescência própria, suave e inquebrantável, forjada na aceitação de suas próprias sombras.
Por isso tudo, Djanira resolveu ser ainda mais honesta, consigo própria e com a sua audiência, afinal ela tinha seguidores em seu canal onde fazia rodar o "Vibe da Sol", a qual, então, estava "sepultada" no desvanecimento homeopático a que ela vivia, de cima para baixo, uma varrição de ilusões que a fez acreditar ser outra pessoa, mas que agora ela via dissipar feito uma névoa da aurora.
Sentou-se à cama, já mais refeita dos piores momentos, pegou seu celular e abriu na edição da plataforma de podcast, onde pretendia agora escrever. Era uma espécie de acerto de contas íntimo e tão pessoal quanto possível, mas, também, podia ser público, porque ela iria publicar em seu canal para satisfazer sua audiência. Não sabia bem como se expressar, era uma notícia terrível dizer que "Sol" não existia mais e com efeito tampouco a "Vibe da Sol".
"Meus queridos seguidores... Eu... Eu não sei bem como falar isso, mas preciso fazer alguma coisa com uma notícia verdadeira. O que vocês veem não é mais a Sol, eu deixei de existir. Sim, deixei de existir porque me redescobri Djanira, a verdadeira. Essa pessoa que vocês veem é a original, saída da "fábrica". Literalmente. Em breve, vou sair desse hospital e viverei a vida que cabe a mim vivê-la e não mais ser uma fantoche de mim mesma. Nunca mais. Espero que vocês compreendam o que estou dizendo, vocês são inteligentes o bastante para entender que o autoengano é um dos piores sinais da ilusão que criamos de nós mesmos e das situações também. Não sei ainda o que vou fazer desse canal, preciso pensar um pouco mais, talvez volte com uma novidade, não sei... Obrigada a todos vocês que estiveram comigo nesse momento tão difícil para mim, e gratidão a todos sempre."
Djanira chorou um choro de vitória. De autovitória por assim dizer. Era a sua vitória, sua e de ninguém mais. Exceto o Dr. Omar. Um homeopata que a fez mudar a chavinha.
As lágrimas que caíam sobre a tela do celular não eram de tristeza, mas de uma gratidão tão vasta e profunda que só poderia ser expressa pelo corpo. Era a gratidão de quem se reencontra após uma longa e perigosa viagem. A gratidão por estar viva, não como um personagem, mas como uma pessoa.
Enquanto as notificações começavam a chover – mensagens de apoio, de confusão, de admiração pela coragem –, uma imagem clara e potente brotou na mente de Djanira. Não era um pensamento ansioso ou uma ideia forçada. Era uma semente, plantada pela experiência da cura, que agora germinava com vigor inabalável.
Ela não queria apenas agradecer ao Dr. Omar. Ela queria honrar o caminho que ele lhe mostrou. A Homeopatia não havia sido apenas um tratamento; havia sido uma filosofia de vida, uma lente através da qual ela pôde enxergar a si mesma e o processo de cura com uma clareza revolucionária.
Poucos dias depois, já em sua casa, com a força vital circulando por seu corpo de forma que ela nunca imaginara possível – uma energia calma, constante e resiliente –, ela recebeu a visita do Dr. Omar para um acompanhamento.
"Doutor", ela disse, seus olhos brilhando com uma luz que ele nunca vira antes – era a luminescência própria da qual lhe falara. "O senhor salvou a minha vida. Mas não apenas me tirando do hospital. Devolveu-me a mim mesma."
Dr. Omar sorriu, seu rosto sereno. "Eu apenas forneci o estímulo, Djanira. A força vital, a vontade de se curar, essa sempre foi sua."
"E é por isso que eu quero fazer algo com isso", ela declarou, a voz firme e cheia de um novo propósito. "A 'Vibe da Sol' morreu. Ela era a doença. Mas o canal… o canal pode ser a cura."
Ele a fitou, curioso.
"Quero criar um novo projeto. Um podcast que não venda positividade tóxica, mas que explore a saúde integral. Quero falar sobre Homeopatia, não como magia, mas como uma ciência da individualidade e da força vital. Quero trazer outras terapias, sempre com base e respeito, mostrando que a cura vem de ouvir o corpo, integrar as sombras, e encontrar um equilíbrio dinâmico. Um projeto sobre a liberdade sadia de ser humano, com todas as suas complexidades."
A ideia não nasceu da ansiedade de se manter relevante, mas de uma centelha de generosidade genuína. Ela havia atravessado o inferno do autoengano e encontrado um caminho de volta. Agora, sentia o impulso irresistível de iluminar esse caminho para outros que pudessem estar tão perdidos quanto ela esteve.
Dr. Omar ficou em silêncio por um momento, visivelmente comovido. "Isso… seria extraordinário, Djanira. Desmistificar a cura, falar sobre a Lei de Hering, sobre a crise de cura… é um serviço de amor. E o nome?"
Djanira olhou pela janela, para o sol que agora acariciava as folhas das árvores sem precisar possuí-las.
"Vai se chamar 'O Jardim da Djanira'", ela anunciou, um sorriso tranquilo e poderoso no rosto. "Porque a saúde não é sobre ser um astro solitário e incandescente. É sobre ser um ecossistema diverso, resiliente, onde tudo tem seu lugar – a luz e a sombra, a alegria e a tristeza, a força e a vulnerabilidade. É sobre permitir que a própria vida, em toda a sua verdade, floresça."
Era mais do que um novo podcast. Era a materialização de sua própria cura. De dentro para fora. A menina Djanira, a mulher Djanira, finalmente inteira, pronta não só para performar, mas para compartilhar. E seu jardim, ela sabia, estava apenas começando a florescer.
"Saúde rima com liberdade", disse Djanira a sua mãe, tendo o pai, Vitor, a seu lado. Ela havia voltado para a casa dos pais, onde poderia com calma avaliar como iria retomar as suas coisas, a sua vida que até então - com o rosto e alma de Djanira - havia sido retomada. Foi um conselho do Dr. Omar, para que ela tivesse um tempo razoável para se fortalecer cada vez mais.
"Minha querida, você não precisa ter pressa", disse o pai, com afeto. "Nós temos todo o tempo do mundo para você, minha filha".
Djanira abraçou seu pai e o beijou com amor e o fez em seguida a mesma coisa com a mãe.
"Eu preciso procurar um amigo agora", disse Djanira. "Ele foi muito importante para mim também".
Ela saiu e foi visitar Maurício em seu estúdio. Ali mesmo onde ela gravou a "Vibe da Sol" por tantas vezes.
A campainha do estúdio soou com um som familiar, mas o coração de Djanira bateu em um ritmo novo. Quando a porta se abriu, Maurício ficou parado por um segundo, seus olhos percorrendo-a da cabeça aos pés. Não era o olhar de quem via uma celebridade, mas de quem procurava um amigo.
"Djanira?", ele disse, num sussurro quase de incredulidade.
Ela não usava maquiagem pesada. Vestia uma roupa simples e confortável. Seu cabelo estava solto, e seu sorriso era pequeno, contido, mas genuíno. Nos olhos, não havia o brilho artificial do ring light, mas a profundidade tranquila de quem havia navegado por suas próprias tempestades.
"Posso entrar, Maury?", ela perguntou, a voz suave, sem a entonação de palco.
Ele se afastou da porta, ainda um pouco atordoado. Ela entrou e seu olhar percorreu o pequeno espaço – as paredes acústicas, a mesa de som, o ring light desligado num canto. Aquele lugar havia sido o palco de sua maior fantasia e, ironicamente, o local onde a semente da sua verdade havia sido plantada, naquele dia em que ele a confrontou.
"Eu... eu li o seu texto", Maurício disse, hesitantemente. "Foi a coisa mais corajosa que já vi você fazer. Mais do que qualquer live para milhares de pessoas."
Djanira sentou-se no mesmo banco de sempre, mas sua postura era diferente. Não era mais rígida, performática. Estava relaxada, enraizada.
"A coragem veio quando não tive mais escolha, Maurício. Quando percebi que a persona 'Sol' estava me matando." Ela fez uma pausa, olhando para as próprias mãos, agora quietas sobre o colo. "Você tentou me avisar. Lembro do que disse: 'Às vezes, ajudar é só sobre sentar no escuro com alguém'. Na época, eu não entendi. Agora, é a base de tudo."
Maurício sentou-se à sua frente, seu rosto sério. "E agora? O que você vai fazer?"
Ela olhou ao redor, mas seu olhar não era de saudade ou angústia. Era de reconciliação.
"Vou fazer um novo podcast. Chama 'O Jardim da Djanira'. Vou falar sobre cura de verdade, sobre Homeopatia, sobre a beleza de ser inteiro. E..." ela estendeu a mão, indicando o estúdio, "...gostaria de gravá-lo aqui. Com você. Mas não será mais a 'Sol' dando ordens. Será a Djanira, colaborando com um amigo."
Um sorriso lento e verdadeiro se abriu no rosto de Maurício. Era o sorriso de quem via não apenas uma ex-cliente voltando, mas uma pessoa renascida.
"Você nem precisa perguntar. O estúdio é seu. O nosso." Ele fez uma pausa, emocionado. "Estou orgulhoso de você, DJ."
O apelido de infância soou como uma benção. Djanira sentiu um calor percorrer seu peito. Aquela não era a gratidão performática de antes, que negava a dor. Era uma gratidão que incluía a dor, porque a dor a havia levado até ali.
Ela se levantou e caminhou até o centro do estúdio, onde o ring light estava. Em vez de ligá-lo, ela o empurrou suavemente para o lado, abrindo espaço.
"Eu entendi o que é liberdade sadia, Maurício", ela disse, sua voz clara e calma enchendo o silêncio do lugar. "Não é a liberdade de ser apenas feliz, radiante e positiva. É a liberdade de ser inteira. É a liberdade de sentir tristeza sem se afogar nela, de sentir raiva sem ser consumida por ela, e de sentir alegria sem a obrigação de que ela seja permanente. É a liberdade de sentar no escuro, sem medo, sabendo que você não está sozinho – nem mesmo de si mesmo."
Ela ficou em pé, no coração daquele que foi seu palco de ilusões, e sorriu. Não era o sorriso de orelha a orelha de 'Sol'. Era o sorriso sereno de Djanira, um sorriso que aceitava as lágrimas, as derrotas e as vitórias como partes do mesmo todo.
A persona "Sol" havia sido um eclipse, bloqueando sua própria luz. Agora, o eclipse havia passado. E a luz que brilhava era sua, era dela, era Djanira – não um astro distante, mas um jardim em plena flor, finalmente livre para ser exatamente quem era.